Ambiente + Simples | Simplificação de licenciamentos ambientais
O recém publicado Decreto-Lei 11/2023, de 10 de fevereiro, anuncia a “reforma e simplificação de licenciamentos ambientais”. A necessidade de reduzir os custos de contexto que dificultam, atrasam ou impedem o investimento é reconhecida no preâmbulo do diploma.
A linha do diploma é, no essencial, uma linha de simplificação de procedimentos administrativos, na qual se destaca, por muito significativa, a redução das obrigações de Avaliação de Impacte Ambiental (AIA) às normas imperativas de Direito da UE, associada à disciplina das situações em que as autoridades nacionais podem exercer a sua discricionariedade em matéria de sujeição de determinados projetos a AIA.
Um tal apelo à diminuição da pegada regulatória tem ecos no programa de “better regulation” da UE no segmento da desburocratização e da diminuição de custos para os agentes económicos (sob o mote “cutting red tape”). No dia 9 de fevereiro deste ano o Conselho Europeu extraordinário, no contexto do plano de re-industrialização apresentado pela Comissão Europeia, concluiu, a propósito do “quadro regulamentar: são essenciais condições de enquadramento simples, previsíveis e claras para o investimento na União Europeia. Os procedimentos administrativos e de concessão de licenças deverão ser simplificados e acelerados, inclusive para assegurar a capacidade de fabrico dos produtos fundamentais para atingir os objetivos de neutralidade climática da UE, tendo em conta toda a cadeia de abastecimento e de valor transfronteiras.“
Considerando a orientação política do Conselho Europeu são de esperar futuros comandos legislativos em sede de Direito da UE determinando novas iniciativas de desburocratização e de simplificação de procedimentos administrativos.
No último ano as medidas legislativas de simplificação de procedimentos administrativos têm sido concentradas em Portugal no sector das energias renováveis, com a publicação do Decreto-Lei 30-A/2022, de 18 de abril, que aprovou “medidas excepcionais que visam assegurar a simplificação dos procedimentos de produção de energia a partir de fontes renováveis” e do Decreto-Lei 72/2022, de 19 de outubro, que alterou o primeiro. Sem surpresa, o Decreto-Lei 11/2023 vem novamente alterar o Decreto-Lei 30-A/2022. No âmbito da UE e também com uma aposta na simplificação dos procedimentos administrativos que condicionam a instalação e funcionamento de equipamentos de produção de energias renováveis merece destaque o recente Regulamento (UE) do Conselho de 22 de dezembro de 2022, que estabelece um regime para acelerar a implantação das energias renováveis.
Não obstante a grande extensão do Decreto-Lei 11/2023, o seu preâmbulo anuncia que se trata do início da “reforma de simplificação dos procedimentos existentes” e que “serão futuramente adotadas novas iniciativas legislativas com o mesmo propósito de simplificação e redução dos encargos administrativos para as empresas também noutras áreas, incluindo, em especial, o urbanismo, ordenamento do território, indústria, comércio e serviços e agricultura.”
Assim, a maior parte das medidas do Decreto-Lei 11/2023, seguindo a lógica que presidiu já – por exemplo – ao regime jurídico dos Projetos de Interesse Nacional (PIN), simplifica, clarifica e acelera procedimentos administrativos, fazendo-o por via de modificações e aditamentos a diversos regimes jurídicos, aqui enunciados pela ordem em que são modificados: AIA, arranque e corte de oliveiras, proteção do sobreiro e da azinheira, regime jurídico da conservação da natureza e da biodiversidade, Reserva Ecológica Nacional, Reserva Agrícola Nacional, classificação de bens culturais, instalações de gases combustíveis em edifícios, emissões industriais, prevenção e controlo de emissões poluentes para o ar, produção de água para reutilização, utilização de recursos hídricos, regime geral da gestão de resíduos, regime jurídico da deposição de resíduos em aterros, sistema de indústria responsável (SIR) e simplificação dos procedimentos de produção de energia a partir de fontes renováveis. Todas estas alterações legislativas entrarão em vigor no dia 1 de março de 2023.
A par desta longa série de modificações de diversos procedimentos administrativos previstos em diversos regimes jurídicos avulsos, o Decreto-Lei 11/2023 anuncia uma reforma de fundo assente na certificação automática, por via electrónica, de carácter gratuito e quase incondicional da ocorrência de deferimentos tácitos “ou de outro tipo de efeitos positivos associados à ausência de resposta das entidades competentes, à luz do Código do Procedimento Administrativo ou de qualquer outra lei ou regulamento, independentemente da natureza da entidade competente para a prática do ato”. Esta reforma implica a modificação de diversos dispositivos do Código do Procedimento Administrativo e, dadas as suas implicações, só entrará em vigor a 1 de janeiro de 2024.
Será também esta a data da entrada em vigor do regime do “Reporte Ambiental Único” (RAU) criado pelo artigo 2.º do Decreto-Lei 11/2023, regime esse mediante o qual se pretende tramitar de forma desmaterializada no SILiAmb — Sistema Integrado de Licenciamento do Ambiente, o cumprimento, por parte dos agentes económicos, da maioria dos deveres de informação periódica impostos pelos diversos regimes jurídicos das actividades económicas com incidência ambiental, introduzindo coerência, interoperabilidade e ainda eliminação de repetições desnecessárias entre cada tipo de informação a prestar no âmbito de cada qual dos regimes jurídicos cumulativamente aplicáveis à mesma atividade. O correto funcionamento do RAU é condição para a certificação automática dos deferimentos tácitos e situações afins.
A ambição destas duas reformas (desmaterialização integral dos procedimentos e regime automático da certificação dos deferimentos tácitos) obrigará a um grande esforço de capacitação em recursos humanos, tecnológicos e informáticos por parte dos diversos serviços da Administração Pública, desde logo a Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional , e, em particular, “a Agência para a Modernização Administrativa, I. P., é responsável pela coordenação das medidas necessárias à execução administrativa do presente Decreto-Lei, bem como pela sua monitorização permanente e por assegurar o cumprimento dos prazos previstos nos números anteriores.”
No entretanto deverá ser publicada uma rectificação do Decreto-Lei 11/2023 corrigindo alguns lapsos como o que consta do artigo 32.º que refere uma numeração errada dos respetivos anexos.
Se se quiser sumariar as principais alterações que entram em vigor no dia 1 de março de 2023, cumpre salientar, segundo uma divisão em oito eixos fundamentais, que:
- No âmbito dos procedimentos de AIA, seus regime jurídico e efeitos
– Deixam de estar sujeitos a AIA, seja obrigatória, seja caso a caso, no essencial, as ampliações e alterações de determinados projetos já avaliados, dentro de determinadas condições, no sentido de não se incorrer em repetições desnecessárias desta avaliação.
– Por seu turno, deixam de estar obrigatoriamente sujeitos a AIA, para passarem a estar sujeitos a AIA caso a caso, projetos de centros eletroprodutores de energia solar quando a área ocupada por painéis solares e inversores seja inferior a 100 ha, bem como um leque mais vasto de projetos de parques eólicos e respetivo sobre-equipamento e de projetos ligados à piscicultura, tal qual ainda as redes de transporte de energia elétrica até 20 km e 110 kV;
– Deixam de estar sujeitos a AIA os parques e plataformas logísticas que já tenham sido sujeitos a avaliação ambiental estratégica, sem prejuizo da sujeição a AIA de cada projeto específico dentro dos mesmos;
– Mesmo ao nível dos projetos sujeitos a AIA, são introduzidas alterações de redação que poderão determinar, na sua interpretação, alterações das regras práticas de sujeição;
– É criada a conferência procedimental dita de «análise ambiental de corredores», com vista à determinação da fixação ambientalmente mais adequada do traçado de redes de comunicações ou de abastecimento, o que torna a sujeição a AIA, quando necessária, apenas necessária na respetiva fase de execução;
– Quando em sede de AIA tenham sido emitidos pareceres favoráveis, expressos ou tácitos, no âmbito dos regimes jurídicos relativos ao corte de oliveiras, de proteção ao sobreiro e à azinheira, da conservação da natureza e da biodiversidade, da REN, da RAN, e dos bens culturais classificados, pelas entidades competentes para a aplicação de tais regimes, deixam de ser exigidas as intervenções das mesmas entidades posteriores à AIA, eliminando-se a duplicação de procedimentos;
– Consagra-se o dever de fundamentação de facto e de direito, relação com impactes perspetivados e proporcionalidade das condições da DIA;
– Determina-se que os prazos para deferimento tácito se contam desde o momento da receção do EIA e não desde o momento de receção do pedido «devidamente instruído», o que, na prática, permitia que o prazo apenas se iniciasse quando a Administração Pública o entendesse.
- No domínio da prevenção e controlo da poluição e das emissões
– Elimina-se a necessidade de renovação da LA, a qual deixa assim de ter de ser renovada ao fim de 10 anos por iniciativa do interessado, sem prejuizo da necessidade de realizar o procedimento para alteração de LA quando existam alterações substanciais da instalação industrial ou quando seja necessário atualizar a LA em função da evolução das melhores técnicas disponíveis e noutros casos previstos na lei;
– Dispensam-se de LA instalações sem escala industrial tais como as atividades químicas experimentais, a preparação final de produtos em loja, a produção em estabelecimentos comerciais ou de retalho e as pequenas atividades de fabrico artesanal – legalmente definidas como as exercidas em estabelecimentos com potência elétrica igual ou inferior a 99 kVA, potência térmica não superior a 4 x 10(elevado a 6) kJ/h e número de trabalhadores não superior a 20;
– Dispensa-se o título de emissões para o ar para quem já tem ou poderá vir a ter LA;
– Elimina-se a participação de entidades acreditadas na instrução dos procedimentos de licenciamento para obtenção de LA
– Torna-se meramente facultativa a utilização de verificadores acreditados para o reporte de informações por operadores de instalações sujeitas ao regime de PCIP;
– É eliminada a necessidade de prévia aprovação do plano de gestão de efluentes pecuários para que ocorra a emissão de LA, assim se permitindo que esta última seja emitida de forma mais rápida, embora na estrita condição da posterior aprovação daquele plano;
– Determina-se que ocorre deferimento tácito do pedido de LA mediante o mero decurso do prazo legal de decisão sem que a Administração se pronuncie.
- No âmbito das obrigações de reporte
– Conforme já se referiu, é criado o RAU em matéria ambiental, por forma a simplificar e desmaterializar obrigações de reporte, eliminando o esforço de carregar informação redundante, na medida em que este reporte único inclui todas as monitorizações referentes aos regimes ambientais da competência da APA e das CCDR que derivam de legislação da UE, permitindo-se, de forma eletrónica e totalmente desmaterializada, que a submissão de um determinado reporte alimente outros reportes e torne assim desnecessária a repetição de informações, ainda que para efeitos de outro regime jurídico diferente daquele ao abrigo do qual foi prestada informação precedente.
- No domínio da reutilização de águas
– Deixa de ser necessária licença de produção e licença de utilização para certos casos de aproveitamento de águas para reutilização, como sejam a reutilização pela mesma pessoa singular ou coletiva ou por entidades incluídas no mesmo grupo, e também quando, em sistemas de gestão de águas residuais urbanas, apenas exista uma entidade gestora que produza água para uso próprio ou cedência a terceiros, desde que os recetores ambientais sejam os mesmos da descarga de águas que lhe dá origem.
- No domínio do regime jurídico da utilização de recursos hídricos
– Passam a estar sujeitas a mera comunicação prévia, que permite o início da obra após um determinado prazo sem a oposição da Administração, obras para construção de infraestruturas hidráulicas e captação de águas para aproveitamento de recursos hídricos particulares inseridas em malha urbana cujo aproveitamento seja enquadrado por PDM ou que se traduzam na recuperação de infraestrutura existente;
– A sujeição de várias utilizações de recursos hídricos diferentes entre si, quando levadas a cabo por um único operador e pedidas simultaneamente para a mesma unidade/local/empreendimento, a um único título de utilização de recursos hídricos, e não a tantos títulos de utilização de recursos hídricos quantas as utilizações diferentes entre si em causa;
– Clarifica-se que, nos pedidos de autorização, o deferimento tácito se forma na ausência de decisão expressa após o decurso do prazo legalmente estabelecido;
– A renovação das licenças de utilização passa a ser automática caso não existam alterações, dispensando-se, ao contrário do que vem sucedendo até agora, o interessado de realizar um procedimento para renovação da licença.
- No domínio da gestão de resíduos
– Elimina-se a necessidade de obtenção de título específico de operação de gestão de resíduos quando se trate de operação de resíduos permitida por título relativo a estabelecimento industrial abrangido pelo Sistema da Indústria Responsável (SIR) em procedimento realizado para o efeito quanto a instalações intrínsecas ou extrínsecas à atividade industrial, substituindo-se o procedimento de controlo prévio de operações de gestão de resíduos por um parecer vinculativo da autoridade licenciadora competente em matéria de resíduos mas no quadro do procedimento para a atribuição de um título, ao abrigo do SIR;
– Explicita-se que a utilização de resíduos, em substituição de matérias-primas, não provoca, nos estabelecimentos industriais enquadrados pelo SIR, um agravamento dos procedimentos administrativos a que estão sujeitos;
– Exclui-se do âmbito de aplicação do Regime Geral da Gestão de Resíduos e do Regime Jurídico da Deposição de Resíduos em Aterro a gestão de resíduos das explorações de depósitos minerais e de massas minerais;
– Restringe-se a um conjunto mais reduzido de produtores de resíduos perigosos a obrigação de planificar a minimização da produção de resíduos;
– Passa a prever-se a aplicação harmonizada da classificação de resíduos, em caso de conflito entre os produtores e os operadores de tratamento de resíduos, prevendo-se, igualmente, que a caracterização de resíduos passe a ser efetuada através do sistema integrado de registo eletrónico, com a consequente desmaterialização do procedimento atual;
– Passa a permitir-se, nos aterros para resíduos não perigosos, a humidificação dos resíduos através da reinjeção de lixiviados ou de concentrado da unidade de tratamento avançado por membrana, desonerando-se os operadores dos custos com o transporte e encaminhamento dos mesmos para destino final adequado;
– Eliminam-se alguns dos valores-limite aplicáveis a aterros de resíduos não perigosos, substituindo a previsão dos mesmos pela possibilidade de definição de parâmetros adicionais para determinadas tipologias de resíduos, por forma a diminuir os constrangimentos com a admissibilidade de resíduos em aterro.
- No domínio estrito do setor energético
– Os edifícios novos ou sujeitos a obras deixam de estar obrigados a ter instalações de gás.
- Quanto ao regime geral do procedimento administrativo, constante do Código do Procedimento Administrativo
– Determina-se que as entidades administrativas apenas podem solicitar por uma única vez novos documentos, esclarecimentos, elementos complementares ou informações ao interessado, bem como que, sempre que tal aconteça, o prazo de decisão não fica suspenso, desde que o particular responda com o envio dos documentos, esclarecimentos, elementos complementares ou informações no prazo geral de 10 dias;
– Passa a prever-se que o pedido de elementos para correção do pedido e a produção de prova devem ser realizados simultaneamente e não em dois momentos separados;
– Determina-se que os pareceres de entidades administrativas não podem ser emitidos fora do prazo previsto na lei, bem como que a entidade responsável pelo procedimento fica obrigada a avançar com o mesmo assim que esse prazo seja ultrapassado, em vez de insistir na solicitação do parecer ou de continuar a aguardar pelo mesmo.
– Reduzem-se os prazos gerais para a emissão de pareceres no procedimento administrativo geral.
A aprovação deste novo quadro normativo e, tanto ou mais do que essa aprovação e respetiva entrada em vigor, a respetiva complementação administrativa, levantarão novos problemas jurídicos de interpretação, de submissão de projetos e até, em não poucos casos, de diminuição de garantias administrativas dos agentes económicos, sem prejuizo do salutar objetivo de simplificação que presidiu a esta reforma.