20.01.2022

Áreas de Prática: Financeiro

Setores: Banca e Serviços Financeiros

Alteração ao Código dos Valores Mobiliários e legislação conexa

INTRODUÇÃO
No passado dia 31 de dezembro, foi publicada a Lei 99-A/2021, de 31/12, que procede, entre outras, a alterações substanciais ao Código dos Valores Mobiliários (“CVM”), ao Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo, ao Estatuto da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, ao Regime Jurídico da Supervisão de Auditoria, aos estatutos da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, entre outros.
Com esta reforma pretendeu-se promover a proteção dos investidores e estimular o desenvolvimento, a competitividade e a eficiência dos mercados, através da implementação de uma regulação mais simples, objetiva, clara e proporcional.

Dada a extensão e profundidade das alterações em análise, destacamos nesta Newsletter as principais novidades.
As alterações introduzidas pela Lei 99-A/2021 entrarão em vigor 30 dias após a sua publicação, com exceção da nova redação do artigo 3.º do Regime Jurídico de Supervisão de Auditoria que entrou em vigor no passado dia 1 de janeiro de 2022.

PRINCIPAIS NOVIDADES

Alterações ao Código dos Valores Mobiliários

1. Eliminação da figura de sociedade aberta
Por não ter paralelo em outros ordenamentos jurídicos, é eliminada a figura de sociedade aberta.
As sociedades abertas que revistam esta qualidade na data de publicação desta lei continuarão a reger-se pelas normas legais e regulamentares vigentes até 31 de dezembro de 2022.

2. Imputação dos direitos de voto e participação qualificada
Nesta sede, dá-se nota da clarificação do regime do CVM quanto à imputação dos direitos de voto detidos ou imputáveis a determinada sociedade, dispondo no sentido de que são também imputáveis à sociedade que a domine, mas não o inverso.

Ademais, tendo em consideração as ações dadas em garantia ou administradas, registadas ou depositadas junto de terceiro, esclarece-se que só existe imputação de votos a este terceiro nos casos em que este
possa exercer os direitos de voto segundo o seu critério, na ausência de instruções específicas do titular das ações.

Foram alterados os artigos relativos à obrigação de comunicação ao regulador da aquisição de participação qualificada em entidades reguladas, tendo-se nomeadamente eliminado o dever de comunicação de participação qualificada relativamente ao limiar de 2%.

 

3. Voto Plural
Prevê-se a emissão de ações com direito ao voto plural, enquanto medida competitiva para dispersão do capital em mercado.

 

4. Participação e Votação em Assembleia
Simplifica-se o regime de participação e votação em assembleia. Neste sentido, passa-se a prever uma única declaração de participação, a enviar ao intermediário financeiro.

Por outro lado, as alterações dispõem ainda no sentido de que a alienação de ações entre a data de registo relevante e a data da assembleia geral não prejudicam o exercício do direito a participar e votar na respetiva assembleia. Contudo, o presidente da mesa da assembleia geral deve estar informado do dever de alienação.

 

5. Regime das Ofertas Públicas
São efetuadas profundas alterações ao regime das ofertas públicas de valores mobiliários, no sentido de o tornar mais simples e atual.

Destacamos, entre inúmeras alterações, a adaptação do CVM ao Regulamento (EU) 2017/1129 do Parlamento e do Conselho, relativo ao prospeto a publicar em caso de oferta de valores mobiliários ao público ou da sua admissão à negociação em mercado regulamentado.

Paralelamente, e dado que a legislação europeia não a referencia enquanto serviço obrigatório, passou a prever-se o caráter voluntário dos serviços de assistência e colocação em oferta pública.

Regressando ao regime das ofertas proprio sensu, e a par do regime da oferta por alteração das circunstâncias, consagra-se um modelo para a revisão das ofertas públicas que permita a revisão dos seus termos e condições, desde que a mesma não se torne desfavorável para os respetivos destinatários.

Quanto ao regime da responsabilidade pelo prospeto, por sua vez, procurou-se alinhar o regime nacional com o europeu. Os titulares do órgão de administração e fiscalização e o revisor oficial de contas do oferente e do emitente, em funções à data, podem ser responsabilizados pelo seu conteúdo.

Ainda quanto aos prospetos, esclarece-se que estes podem ser apresentados em inglês mesmo que disponham sobre ofertas em Portugal. Contudo, a CMVM pode exigir que, pelo menos, o sumário seja traduzido para português.

 

6. Alterações ao regime das ofertas públicas de aquisição (OPAs)
O regime jurídico das OPAs sofreu a última revisão de fundo em 2006. À época, impunha-se adaptar o regime nacional à Diretiva das OPAs.

A revisão ora operada suporta-se em princípios de simplificação, alinhamento com a legislação europeia, e em princípios fundamentais de promoção do mercado.

Primeiramente, e talvez como reforma mais importante, prevê-se a restrição do âmbito de aplicação do regime das OPAs a ofertas que visem a aquisição de ações e valores mobiliários que conferem direito à sua subscrição ou aquisição, emitidos por sociedades cujas ações estejam admitidas à negociação em mercado regulamentado em Portugal.

A reforma traz igualmente um novo acervo de regras sobre a pendência de condições e questões prejudiciais de registo da OPA. Desta forma, pretende-se clarificar o regime aplicável às “condições de lançamento” enquanto circunstâncias da OPA tal como definidas pelo oferente, bem como questões prejudiciais relacionadas, entre outros, por ónus ou autorizações administrativas.

Por mero decurso do tempo, a OPA passa a extinguir-se em seis meses (caso sejam necessárias autorizações administrativas) ou três meses (caso estas autorizações não sejam precisas). Desta forma, obsta-se ao prolongamento excessivo da situação de incerteza gerada pela oferta após o seu anúncio preliminar.

Na pendência da OPA, prevê-se também que a negociação de valores mobiliários do tipo que são objeto da oferta ou que integrem a contrapartida fora de mercado regulamentado fique sujeita a autorização prévia da CMVM, desonerando-se a sociedade visada da obrigatoriedade de emissão de parecer prévio a cada pedido e permitindo uma maior celeridade no processo de autorização.

Quanto ao relatório da sociedade visada, sobre a oportunidade e as condições da OPA, inscrito no atual artigo 181.º do CVM, prevê-se que a sociedade visada se volte a pronunciar sobre a oferta, por determinação da CMVM, quando o conteúdo do projeto de prospeto que foi considerado pelo órgão de administração para a emissão do seu parecer tenha sofrido alterações substanciais.

O regime das ofertas em concorrência é outro ponto a relevar. A partir da publicação do anúncio preliminar de oferta pública de aquisição de valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado, qualquer outra oferta pública de aquisição de valores mobiliários da mesma categoria só pode ser realizada através de oferta concorrente.

Com a reforma, substitui-se o presente regime da qualificação de uma oferta como concorrente pela imposição de deveres específicos em função do momento em que cada uma das ofertas é anunciada ou em função do momento em que cada uma delas vem a obter o registo. Neste sentido, fica ao critério dos destinatários a apreciação do mérito de cada oferta, que, envolvendo juízos de carácter subjetivo, podem conduzir a valorações diferentes por parte de cada destinatário.

Destacamos ainda que foi objeto da reforma a clarificação do procedimento a observar em caso de realização de prova negativa de domínio, com o propósito de trazer maior transparência para o mercado e prevenir situações de posicionamento de investidores perante a expectativa de uma OPA que, afinal, pode não se concretizar.

São também previstas novas regras quanto às derrogações ao dever de lançamento de OPA. Clarifica-se que a OPA voluntária derrogatória é aquela em que a contrapartida se encontra, à data do respetivo registo, em linha com os requisitos do artigo 188.º do CVM (afastando-se a possibilidade de interpretar que esse preço deve ser recalculado à data em que, terminada a OPA voluntária, se constituiria o dever de lançamento de OPA).

São também consagradas, no artigo 189.º do CVM, alterações ao regime de derrogação em virtude de saneamento financeiro decorrentes da necessidade de adaptação ao regime do CIRE, clarificando-se ainda os critérios da derrogação decorrente de fusão, dadas as dúvidas que se suscitavam com a redação anteriormente existente

Finalmente, estabeleceu-se que o preço da OPA prevalece, exceto se, entre o termo da oferta e o registo da aquisição potestativa, o oferente ou pessoas que estejam com este em alguma das situações previstas no artigo 20.º do CVM tiver adquirido valores mobiliários da categoria daqueles que são objeto da oferta por um valor superior.

 

Alterações aos custos de supervisão (Estatuto da CMVM)

7. Imputação dos custos de supervisão
Com a mais recente revisão aos seus estatutos, a CMVM passa a poder exigir diretamente às entidades supervisionadas os montantes respeitantes ao acréscimo de custos de supervisão decorrentes de situações excecionais, que exijam recursos específicos ou especialmente acrescidos, nomeadamente considerando a significativa complexidade, morosidade ou o caráter imprevisível e urgente da supervisão em causa. Esse mecanismo dependerá de regulamento a elaborar pela própria CMVM em que se estabeleçam critérios de determinação dos montantes, bem como os modos e prazos de liquidação e cobrança das contribuições a título de reembolsos de custos e despesas legalmente previstos.

 

Regime Jurídico da Supervisão de Auditoria

O objetivo desta revisão foi a simplificação do regime anteriormente em vigor, tornando-o mais eficiente e focado, como reconheceu em comunicado a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM).

A revisão do RJSA entrará em vigor a 30 de janeiro de 2022, com exceção do artigo 3.º, cuja vigência se iniciou a 1 de janeiro de 2022.

 

8. Entidades de Interesse Público
A nova versão do RJSA reduz consideravelmente o elenco de entidades de interesse público, conceito relevante para a sujeição à supervisão da CMVM. De acordo com a própria CMVM, esta alteração permite uma supervisão “mais focada nas entidades mais complexas e com maior risco sistémico, com ganhos de eficiência e redução de custos desnecessários para o mercado salvaguardando ao mesmo tempo a qualidade da supervisão global e a proteção dos investidores”.

Desaparecem do elenco de entidades de interesse público as instituições de crédito, as empresas de investimento, os organismos de investimento coletivo sob forma contratual e societária, as sociedades de capital de risco, as sociedades de investimento em capital de risco e os fundos de capital de risco, as sociedades de titularização de créditos e os fundos de titularização de créditos e ainda as empresas públicas com grande volume de negócios ou ativo líquido total.

Por outro lado, passa a constar da lei a referência a emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação num mercado regulamentado situado ou a funcionar em Portugal, entidades cuja atividade principal consiste na aquisição de participações sociais com maioria de direitos de voto em instituições de crédito, sociedades gestoras de participações no setor dos seguros e as sociedades gestoras de participação de seguros mistas e ainda fundos de pensões que financiam um regime especial de segurança social.

 

9. Atribuições da CMVM
Relativamente às Sociedades de Revisores Oficiais de Contas, a CMVM passa a ter competências de supervisão da idoneidade, qualificação e experiência profissional dos membros dos seus órgãos sociais e idoneidade de sócios que não sejam Revisores Oficiais de Contas, nos termos de regulamentos a elaborar no futuro pela própria CMVM. Genericamente, compete à CMVM o controlo de qualidade dos auditores que realizem a revisão legal de contas de entidades de interesse público.

 

10. Registo de auditores e quadro sancionatório
A revisão do RJSA traz também algumas novidades ao nível do procedimento de registo de auditores, incluindo auditores e entidades de auditoria de países terceiros. A intenção relativamente a este último grupo é a de assimilar as exigências e os requisitos do registo, ainda que se conserve alguma margem, com base no princípio da reciprocidade e equivalência de normas, para alterar ou dispensar os mesmos. A reforma legislativa procurou integrar as recomendações da OCDE no que concerne à eliminação de entraves no acesso à carreira de auditor, simplificando a atividade transfronteiriça de auditoria.

Em relação ao quadro sancionatório, optou-se por uma revisão e reorganização do elenco de contraordenações, mantendo porém a divisão entre contraordenações muito graves, graves e leves e as respetivas molduras para as coimas aplicáveis.

 

Insolvência
A presente Lei vem alterar o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, em concreto o artigo 55.º, que estabelece as funções do Administrador da Insolvência e, ainda, o artigo 203.º referente à conversão e extinção de créditos comuns ou subordinados independentemente de consentimento.

É, ainda, revogado o artigo 204.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março.

Adicionalmente, vem a presente lei aditar o artigo 64.º -A ao Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de novembro, em matéria de registo de valores mobiliários escriturais de emitentes em liquidação ou insolvência.

 

11. Funções do Administrador da Insolvência
O presente diploma procede à revisão dos artigos 55.º e 203.º do CIRE, relativo às funções do administrador da insolvência.

Neste sentido, decorrente do aditamento do número 9 ao artigo 55.º do CIRE, o administrador da insolvência passa a ter competência exclusiva para deliberar a alteração da forma de representação dos valores mobiliários emitidos pelo devedor ou, no caso de valores mobiliários escriturais, da modalidade de registo dos mesmos.

Estão excluídos do âmbito de aplicação do presente artigo os casos em que a administração da massa insolvente seja assegurada pelo devedor, durante o decorrer do processo de insolvência.

 

12. Eliminação a referências às sociedades abertas
Foram alterados os artigos 203.º e 204.º do CIRE com vista a eliminar a menção ao conceito de sociedade aberta, uma vez que uma das mais significativas alterações introduzidas ao CVM em consequência da publicação da Lei 99-A/2021, de 31 de dezembro, prende-se com a eliminação do referido conceito exclusivo da legislação portuguesa, e sua substituição pelo conceito de sociedade “cotada”.

13. Registo de valores mobiliários escriturais

O presente diploma procede, complementarmente, ao aditamento do artigo 64.º-A ao CVM relativamente ao registo de valores mobiliários escriturais de emitentes em liquidação ou insolvência.

Neste sentido, passa a ser obrigatório registar junto do emitente ou de um intermediário financeiro que o represente, os valores mobiliários de emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação, que estejam em liquidação ou insolvência.

A declaração de insolvência passa assim a despoletar a alteração da modalidade de registo individualizado, cabendo ao emitente, nesse caso, proceder à alteração da modalidade de registo individualizado no prazo de seis meses a contar da referida declaração de insolvência.

 

Estatuto da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas
14. Alterações ao funcionamento da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas
A presente alteração do EOROC prevê várias alterações ao regime de funcionamento interno da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas (OROC), incluindo as suas atribuições, as competências dos seus órgãos, regras e procedimentos eleitorais, a duração dos respetivos mandatos e o acesso à profissão, incluindo a inscrição de auditores de países terceiros.

 

15. Exercício de funções de interesse público
No âmbito do exercício de funções de interesse público, é reforçado o papel de revisores oficiais de contas na sua orientação e execução direta, a necessidade de produzir informação adicional e a obrigação de comunicação de vários elementos associados ao exercício da profissão à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários.

O sistema de rotação gradual é densificado, passando a incluir pessoas que desempenhem funções na coordenação do plano de trabalhos, de revisão do trabalho desenvolvido e de gestão da relação com o cliente e ainda o revisor de controlo de qualidade do trabalho.

 

CONCLUSÕES
Do acima exposto, importa, assim, sublinhar a importância da presente reforma que vem alinhar o enquadramento jurídico nacional dos valores mobiliários com o da União Europeia, esperando-se que seja catalisador do desenvolvimento e crescimento do mercado de capitais português.

Conhecimento