
COVID-19 | Estado de emergência: medidas e incidências no domínio penal
Depois da Organização Mundial de Saúde ter caracterizado a situação provocada pelo novo coronavírus (“SARS-Cov-2”) como uma pandemia, foi declarado, em 13 de março, o estado de alerta em Portugal, tendo sido aprovadas, de imediato, várias medidas de contingência. A rápida evolução dos acontecimentos e a perceção de que vivemos tempos realmente extraordinários, nos quais assistimos, em tempo real, aos impactos devastadores desta pandemia, determinou que, no passado dia 18 de março, através do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, fosse decretado o estado de emergência em todo o território nacional, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública.
A situação de calamidade pública – juntamente com a agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras ou de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática – é uma das situações em que pode ser declarado estado de emergência ou estado de sítio, correspondentes, aliás, às duas manifestações de direito de necessidade constitucional acolhidas na nossa Lei Fundamental, nas quais ocorre uma compressão – em maior grau ainda no caso do estado de sítio – de direitos, liberdades e garantias como forma de garantir a subsistência do Estado de Direito, a segurança coletiva e os direitos individuais essenciais.
Todavia, o núcleo essencial do Estado de Direito, composto pelo direito à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil, à cidadania e à liberdade de consciência e de religião não poderá ser afetado. Adicionalmente, e para o que também aqui importa, não se poderá limitar o princípio da não retroatividade da lei criminal nem os direitos de defesa dos arguidos, resultando assim evidente que, no plano criminal, o estado de sítio ou de emergência não se traduz num estado de exceção.
Os fundamentos e o procedimento legislativo estritos necessários à declaração do estado de emergência e do estado de sítio, previstos no artigo 19.º da Constituição e desenvolvidos no Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência (aprovado pela Lei n.º 44/86, de 30 de setembro), determinam que incumbe ao Governo a execução da declaração do estado de emergência. Os termos dessa execução foram conhecidos no passado dia 20 de março, através do Decreto n.º 2-A/2020, por via do qual ficaram a conhecer-se os termos em que alguns direitos, liberdades e garantias dos cidadãos portugueses serão restringidos, pelo menos, nos 15 dias seguintes.
Deste modo, enquanto vigorar o estado de emergência em Portugal, existirão as seguintes restrições, no domínio da liberdade de circulação: os cidadãos estão ao abrigo de um “dever geral de recolhimento domiciliário”, pelo que só poderão circular na via pública:
- Para aquisição de bens e serviços;
- Para efeitos de desempenho de atividades profissionais ou equiparadas (onde se inclui a atividade dos atletas de alto rendimento e seus treinadores, bem como acompanhantes desportivos do desporto adaptado). Note-se, contudo, que é obrigatória a adoção do regime de teletrabalho, sempre que as funções em causa o permitam;
- Para procura de trabalho ou resposta a uma oferta de trabalho;
- Por motivos de saúde (designadamente para efeitos de obtenção de cuidados de saúde e transporte de pessoas a quem devam ser administrados tais cuidados ou dádiva de sangue);
- Para acolhimento de emergência de vítimas de violência doméstica ou tráfico de seres humanos, bem como de crianças e jovens em risco, em casa de acolhimento residencial ou familiar, por aplicação de medida decretada por autoridade judicial ou Comissão de Proteção de Crianças e Jovens;
- Para assistência de pessoas vulneráveis, pessoas com deficiência, filhos, progenitores, idosos ou dependentes;
- Para acompanhamento de menores:
- Em deslocações de curta duração, para efeitos de fruição de momentos ao ar livre;
- Para frequência dos estabelecimentos escolares, quando se trate de um estabelecimento de ensino que promove o acolhimento dos filhos ou outros dependentes a cargo dos profissionais que desempenham serviços essenciais, cuja mobilização para o serviço ou prontidão obste a que prestem assistência aos mesmos;
- Para efeitos de atividade física, em deslocações de curta duração, sendo proibido o exercício de atividade física coletiva;
- Para participação em ações de voluntariado social;
- Por outras razões familiares imperativas (g. para o cumprimento de partilha de responsabilidades parentais, conforme determinada por acordo ou pelo tribunal);
- Para visitas, quando autorizadas, ou entrega de bens essenciais a pessoas incapacitadas ou privadas de liberdade de circulação;
- Participação em atos processuais junto das entidades judiciárias;
- Deslocação a estações e postos de correio, agências bancárias e agências de corretores de seguros ou seguradoras;
- Deslocações de curta duração para efeitos de passeio dos animais de companhia e para alimentação de animais;
- Deslocações de médicos-veterinários, de detentores de animais para assistência médico-veterinária, de cuidadores de colónias reconhecidas pelos municípios, de voluntários de associações zoófilas com animais a cargo que necessitem de se deslocar aos abrigos de animais e de equipas de resgate de animais;
- Deslocações por parte de pessoas portadoras de livre-trânsito, no exercício das respetivas funções ou por causa delas;
- Deslocações por parte de pessoal das missões diplomáticas, consulares e das organizações internacionais localizadas em Portugal, desde que relacionadas com o desempenho de funções oficiais;
- Deslocações necessárias ao exercício da liberdade de imprensa;
- Retorno ao domicílio pessoal; e para
- Outras atividades de natureza análoga ou por outros motivos de força maior ou necessidade impreterível, desde que devidamente justificados.
Por outro lado, os veículos particulares poderão circular na via pública para a realização de qualquer das referidas atividades, bem como para reabastecimento nos postos de combustível.
Contudo, em todas essas deslocações, devem ser respeitadas as recomendações e ordens emitidas pelas autoridades de saúde e pelas forças e serviços de segurança, designadamente as respeitantes às distâncias a observar entre as pessoas.
Significa isto que o dever de confinamento obrigatório, ainda que no domicílio, apenas abrangerá os cidadãos doentes com COVID -19 e os infetados com SARS -Cov2 e aqueles que se encontrem sob vigilância ativa das autoridades de saúde, encontrando-se o seu incumprimento expressamente sancionado como desobediência, pelo Decreto n.º 2-A/2020.
Por outro lado, está ainda previsto um dever geral de proteção relativamente aos maiores de 70 anos, aos imunodeprimidos e aos portadores de doença crónica que devam ser considerados de risco. Estes só poderão circular para efeitos de aquisição de bens e serviços; por motivos de saúde; para efeitos de deslocação a estações e postos de correio, agências bancárias e agências de corretores de seguros ou seguradoras; para efetuar deslocações de curta duração para efeitos de atividade física, sendo proibido o exercício de atividade física coletiva, e para efeitos de passeio dos animais de companhia, e ainda para outras atividades de natureza análoga ou por outros motivos de força maior ou necessidade impreterível, desde que devidamente justificados.
No que respeita à liberdade de iniciativa económica, o Governo determinou um conjunto de limitações que abrangem, quer o encerramento de estabelecimentos (como discotecas, circos, jardins zoológicos ou ginásios); quer a obrigatoriedade de que outros continuem a laborar, como é o caso das padarias, mercearias, supermercados, bombas de gasolina, farmácias, papelarias ou tabacarias, sem embargo de estes poderem vir a ser encerrados por determinação das autoridades de saúde. Outras atividades de comércio a retalho ou de prestação de serviços em estabelecimentos abertos ao público deverão ser suspensas. No entanto, os estabelecimentos de restauração, podem continuar a laborar através dos serviços de take away e de entrega ao domicílio).
Relativamente às atividades de comércio eletrónico, de prestação serviços à distância ou através de plataforma eletrónica, está expressamente prevista a sua manutenção, uma vez que inexiste um contacto próximo entre pessoas, sendo o risco de propagação da doença consideravelmente menor. Também não podem ser suspensas as atividades de comércio e retalho ou de prestação de serviços situadas ao longo da rede de autoestradas, no interior dos aeroportos e nos hospitais.
No tocante às limitações introduzidas à liberdade de culto, foram proibidas as celebrações de cariz religioso e de outros eventos de culto que impliquem a aglomeração de pessoas, sendo que a realização de cerimónias fúnebres está condicionada à adoção de medidas organizacionais que garantam a inexistência de pessoas e o controlo das distâncias de segurança, designadamente através da fixação de um número máximo de presenças, a determinar pela autarquia local respetiva.
Relativamente ao direito à propriedade privada, o º Decreto n.º 2-A/2020 prevê que poderá proceder-se, por decisão do membro do Governo responsável pela área da saúde com faculdade de delegação, à requisição temporária de indústrias, fábricas, oficinas, campos ou instalações de qualquer natureza, incluindo centros de saúde, serviços e estabelecimentos de saúde particulares.
Aqui chegados, importa perceber quais as consequências penais que poderão resultar da violação das medidas adotadas no âmbito do estado de emergência decretado. Entre elas, está a prática do crime de desobediência, previsto no artigo 348.º, n.º 1, do Código Penal.
São requisitos para a verificação deste crime:
- O não cumprimento: o crime consuma-se, quer através da prática de ato cuja omissão foi ordenada, quer através da omissão do ato cuja prática foi ordenada;
- De uma ordem ou mandado: e., atos de comando que impõem uma conduta (positiva ou negativa) a um ou mais sujeitos determinados;Legítimos: ou seja, quando as referidas ordens não contrariem a ordem jurídica no seu todo. A esta luz, serão legítimas as medidas do Decreto n.º 2-A/2020, que concretizem o Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, respeitados que forem os princípios da igualdade, da não discriminação e da proporcionalidade;
- Regularmente comunicados ao destinatário: considerar-se-ão regularmente comunicadas as ordens e os mandados que resultam expressamente do Decreto n.º 2-A/2020, em cumprimento do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020;
- Emanados de autoridade ou funcionário competente: e., desde que assista ao emissor da ordem ou do mandado, poder legal para os determinar, e desde que
- Uma disposição legal preveja que a referida ação ou omissão constitui desobediência ou, na ausência de tal previsão, desde que a autoridade ou o funcionário fizerem expressamente a correspondente cominação.
Concretizando, o cidadão que não acatar uma ordem ou mandado legítimo, regularmente comunicado, proveniente de autoridade ou funcionário competente, incorrerá na prática de um crime de desobediência e será sujeito a uma pena de prisão até 1 ano, que poderá ser substituída com pena de multa até 120 dias. Idêntica sanção encontra-se prevista para a desobediência – esta específica e objeto de tipificação autónoma – de quem não se retirar de ajuntamento ou reunião pública prevista no artigo 304.º, do Código Penal.
De acordo com o Decreto n.º 2-A/2020, apenas se prevê a punição como desobediência nos casos de violação do dever de confinamento obrigatório, o que significa que a prática dos demais atos proibidos ou a omissão dos atos devidos aí previstos apenas implicará a verificação de um crime de desobediência caso a autoridade ou o funcionário competentes para a fiscalização do cumprimento das medidas impostas advirtam o cidadão infrator dessa mesma consequência jurídica.
Também os titulares de cargos políticos poderão incorrer na prática do crime de desobediência, mas por via do disposto no artigo 7.º, do já referido Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência.
Uma e outra das infrações são crimes dolosos, o que pressupõe que o incumprimento que fundamenta o ilícito seja voluntário e consciente.
O crime de desobediência é um de muitos ilícitos – quer no que diz respeito aos cidadãos comuns, quer no que diz respeito a titulares de cargos políticos – que pode ser praticado num contexto de estado de emergência, cuja punição visa, nesse contexto, a defesa do próprio Estado de Direito, seja por violação de deveres emergentes da execução da declaração, seja como forma de punir limitações excessivas aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
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