17.01.2024

Áreas de Prática: Societário, Comercial e M&A

Decreto-Lei n.º 114-D/2023, de 5 de dezembro que transpõe a Diretiva (EU) 2019/2121, na parte respeitante às transformações, fusões e cisões transfronteiriças

No passado dia 5 de dezembro de 2023 foi publicado em Diário da República o Decreto-Lei n.º 114-D/2023, que vem transpor para o ordenamento jurídico português a Diretiva (EU) 2019/2121 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de novembro de 2019, na parte respeitante às transformações, fusões e cisões transfronteiriças.

O Decreto-Lei entrou em vigor no passado dia 5 de janeiro de 2024 e determinou a alteração de diversos diplomas, concretamente o Código das Sociedades Comerciais, o Código do Registo Comercial, o Decreto-Lei n.º 24/2019, de 1 de fevereiro e o Regulamento Emolumentar dos Registos e Notariado.

 

Contexto – União Europeia

O Parlamento Europeu e o Conselho adotaram a 27 de novembro de 2019 a Diretiva (UE) 2019/2121, que alterou a Diretiva (UE) 2017/1132 na parte respeitante às transformações, fusões e cisões transfronteiriças.

Não obstante criar um conjunto comum e harmonizado de normas relativas a estas matérias, a Diretiva oferece aos Estado-Membros um vasto leque de opções para transpor as questões-chave abordadas para a legislação local – nomeadamente quanto a saber se estes regimes podem ser aplicados a sociedades sujeitas a processos de insolvência ou de liquidação, ou ainda qual a determinação concreta das maiorias exigidas em Assembleia Geral para a aprovação de transformação transfronteiriça.

Foi neste contexto que foi discutida e aprovada a Diretiva (UE) 2019/2121.

 

Fusões, Cisões e Transformações – Novas Regras

 

A legislação nacional prevê desde 2009 que sociedades com sede em distintos países da União Europeia – tendo uma delas sede em Portugal – possam concretizar entre si uma fusão transfronteiriça (nos termos do que ficou estabelecido na Diretiva 2005/56/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de outubro a qual foi transporta para o ordenamento jurídico nacional pela Lei 19/2009 de 12 de maio). Com a adoção da Diretiva (UE) 2019/2121, passou a ser necessário transpor as regras mais alargadas e concretas relativas à fusão e, ainda, regulamentar especificamente as figuras jurídicas da cisão e da transformação transfronteiriça.

 

  • Fusões

As alterações legislativas ao regime jurídico das fusões previsto no Código das Sociedades Comerciais ocorreram tanto no que respeita às regras relativas às fusões internas (ou nacionais) como quanto às normas atinentes às fusões transfronteiriças.

 

Para as fusões internas (já reguladas nos artigos 97.º a 117.º do Código das Sociedades Comerciais) foram previstas as seguintes alterações:

  • A introdução de novos elementos que necessariamente terão de constar no projeto de fusão, designadamente a menção dos elementos identificativos (tipo, firma e sede) da sociedade resultante da fusão, as garantias oferecidas (quando existam) aos credores das sociedades participantes da fusão e a informação sobre a contrapartida da aquisição das participações sociais aos sócios da sociedade incorporada ou a fundir;
  • A introdução de novos elementos que necessariamente terão de constar do exame do projeto de fusão a realizar por revisor oficial de contas, nomeadamente a necessidade de ser tido em conta, para a relação de troca, o valor de mercado das participações sociais das sociedades participantes na fusão antes do anúncio do projeto, bem como a necessidade de serem concretamente indicados os métodos utilizados para determinar a contrapartida da aquisição das participações sociais aos sócios da sociedade incorporada ou a fundir e justificada a sua aplicação;
  • A introdução de menções adicionais a constar na convocação da assembleia geral, das quais se destaca a necessidade de mencionar que os sócios ou acionistas (de ora em diante, o termo sócio abrangerá as duas realidades), os credores sociais e os representantes dos trabalhadores (ou, não existindo, os trabalhadores das sociedades participantes) podem apresentar à sociedade observações sobre o projeto de fusão até 5 dias úteis antes da data designada para a assembleia geral;
  • O alargamento do prazo no qual os credores das sociedades participantes podem deduzir oposição judicial à fusão, que passa de um para três meses após a publicação do registo do projeto, mantendo-se a exigência de terem solicitado à sociedade a satisfação do crédito há pelo menos de 15 dias sem que o pedido tenha sido atendido.

 

O regime jurídico das fusões transfronteiriças (regulado nos artigos 117.º-A a 117.º-L do Código das Sociedades Comerciais) foi profundamente alterado, destacando-se as seguintes modificações:

  • A introdução da referência obrigatória no projeto comum de fusão aos projetos de alteração nos estatutos da sociedade incorporante ou ao projeto de estatutos da nova sociedade, se for caso disso;
  • A necessidade de elaboração de um relatório elaborado pelas administrações das sociedades participantes e destinado aos sócios e aos trabalhadores, a disponibilizar eletronicamente e em conjunto com o projeto de fusão pelo menos 6 semanas antes da data da assembleia geral que aprovará a fusão, no qual se indiquem os fundamentos jurídico-económicos da fusão e as implicações para os trabalhadores e para a atividade futura de cada uma das sociedades; este relatório terá uma secção especial para os sócios e outra para os trabalhadores, nas quais serão explicitadas informações relevantes para cada grupo de destinatários, podendo estas secções constituir um relatório único ou dois relatórios autónomos em função dos destinatários;
  • A receção, pela sociedade, de um parecer dos trabalhadores (ou dos representantes destes, quando existam) obriga a administração da sociedade a informar os sócios sobre esse facto, a anexar o parecer ao relatório que elaborou e, ainda, a apresentar uma resposta fundamentada aos trabalhadores que aborde as questões, posições e preocupações levantadas por estes;
  • A fiscalização do projeto comum de fusão transfronteiriça por revisor oficial de contas (ou sociedade de revisores oficiais de contas) independente passa a ser exigida mesmo que as sociedades participantes tenham órgão de fiscalização (e não apenas em substituição deste);
  • A sociedade resultante da fusão deve agora proceder ao pagamento de todas as contrapartidas da aquisição das participações sociais previstas no projeto de fusão aos sócios das sociedades participantes no prazo de 2 meses a contar da inscrição definitiva da fusão no registo comercial;
  • Quando o sócio entenda que a contrapartida da aquisição das participações sociais é inadequada pode pedir ao tribunal que seja fixada contrapartida adequada no prazo de 6 meses a contar da data da deliberação de fusão;
  • O direito de exoneração dos sócios que votem contra a fusão passa a ter um conteúdo mais lato, permitindo-se agora que possam exigir que a sociedade adquira a sua participação social mediante contrapartida adequada no mês seguinte à data da aprovação da fusão;
  • Nos casos em que pretende concretizar-se a fusão por incorporação de uma sociedade totalmente pertencente a outra, e ainda que esteja dispensada a aprovação do projeto comum de fusão, passa a ser necessário disponibilizar aos sócios (com a antecedência de um mês da data em que se decida a fusão) o seguinte acervo documental: (i) o projeto comum de fusão; (ii) um aviso aos sócios, credores e trabalhadores que lhes permita apresentar observações ao projeto de fusão; (iii) o relatório da administração destinado aos sócios e trabalhadores, acima referido; e (iv) o relatório do revisor ou da sociedade de revisores oficiais de contas.

 

Estas alterações têm dois grandes objetivos: por um lado, a simplificação e harmonização das normas e procedimentos das fusões e, por outro lado, a criação de mecanismos adicionais de proteção dos direitos dos sócios (especialmente os que votem contra a fusão e os que desejam alienar suas participações, fortalecendo o direito à exoneração e o direito a uma compensação adequada), dos credores (que passam a poder manifestar-se sobre os impactos do projeto de fusão nos seus créditos) e dos trabalhadores (concedendo-lhes a oportunidade de se manifestarem sobre o projeto de fusão e o direito de receberem resposta às suas observações).

 

  • Cisões

As alterações promovidas ao nível das cisões verificam-se também em dois planos: no plano interno (pela alteração do regime jurídico da cisão interna) e no plano transfronteiriço (pelo estabelecimento de um regime jurídico próprio para as cisões transfronteiriças).

As cisões de âmbito nacional estão reguladas nos artigos 118.º a 129.º do Código das Sociedades Comerciais; com este diploma, é criada uma Secção II ao Capítulo X (relativo às cisões) para regulamentação específica das cisões transfronteiriças.

Nas cisões internas, a grande alteração consiste na clarificação de que os membros do órgão de administração de cada uma das sociedades participantes são responsáveis, a título solidário, pelos danos causados com a cisão aos sócios e aos credores, quando não tenham observado a diligência de um gestor criterioso e ordenado.

As cisões transfronteiriças, à semelhança das fusões, passam a ter um regime jurídico próprio, destacando-se os seguintes aspetos:

  • A introdução do conceito de cisão transfronteiriça, enquanto processo de “divisão de uma ou mais sociedades, desde que uma das sociedades participantes na cisão tenha sede em Portugal e outra das sociedades participantes na cisão tenha sido constituída de acordo com a legislação de um Estado-Membro […] e tenha a sede estatutária, a administração central ou o estabelecimento principal no território da União Europeia”;
  • A definição de três modalidades de cisão: a cisão parcial, a cisão total e a cisão por separação;
  • A definição dos elementos que necessariamente terão de constar no projeto de cisão transfronteiriça, entre eles uma proposta de calendário indicativo para a cisão;
  • O estabelecimento de um conjunto de regras específicas para o processo de cisão (semelhantes às previstas para as fusões transfronteiriças), nomeadamente a obrigatoriedade de elaboração, pela administração da sociedade a cindir ou das sociedades participantes, de um relatório destinado aos sócios e aos trabalhadores, a necessidade de fiscalização pericial do projeto de cisão transfronteiriça pelo órgão fiscalização ou por revisor ou sociedade de revisores oficiais de contas, o estabelecimento de mecanismos de proteção dos credores e dos sócios e regras que asseguram a adequada fiscalização da legalidade do processo.

 

  • Transformações

As transformações societárias estão reguladas nos artigos 130.º a 140.º do Código das Sociedades Comerciais. O novo diploma, à semelhança do efetuado para as cisões, dividiu também o Capítulo XI em duas Secções: a primeira destinada a regular as transformações internas (que integra os artigos acima mencionados) e a segunda para as transformações transfronteiriças, composta pelos artigos 140.º-B a 140.º-M.

 

No contexto das transformações internas, estipula-se agora (de forma idêntica ao previsto para a cisão) que os membros do órgão de administração da sociedade transformada são responsáveis, a título solidário, pelos danos causados com a transformação aos sócios e aos credores, quando não tenham observado a diligência de um gestor criterioso e ordenado.

 

Para as transformações transfronteiriças, são os seguintes os traços gerais do novo regime agora estabelecido:

  • A introdução do conceito de transformação transfronteiriça enquanto processo através do qual “[…] uma sociedade, sem ser dissolvida ou liquidada ou entrar em liquidação, mantendo a sua personalidade jurídica, converte: a) A forma jurídica sob a qual se encontra registada em Portugal para uma forma jurídica prevista no Estado-Membro para o qual transfere a sua sede estatutária; ou b) A forma jurídica sob a qual se encontra registada noutro Estado-Membro para uma forma prevista pelo direito nacional, transferindo a sua sede estatutária para Portugal”;
  • A fixação dos elementos que necessariamente terão de constar do projeto de transformação;
  • O estabelecimento de ditames específicos semelhantes aos instituídos no regime das cisões transfronteiriças, nomeadamente quanto à obrigatoriedade de emissão pelo órgão de administração do relatório destinado aos sócios e trabalhadores, à fiscalização pericial do projeto de transformação transfronteiriça pelo órgão fiscalização ou por revisor ou sociedade de revisores oficiais de contas, aos mecanismos de proteção dos credores e dos sócios e às regras que asseguram a adequada fiscalização da legalidade do processo de transformação.

 

Controlo da legalidade das operações transfronteiriças

Os serviços de registo comercial são a entidade competente para proceder ao controlo da legalidade das operações transfronteiriças, desde logo, através da emissão de um certificado prévio que comprove o cumprimento dos atos e das formalidades anteriores à fusão, cisão ou transformação, conforme o caso, e ainda pelas competências que detém quanto à fiscalização da legalidade da operação.

Os serviços de registo comercial, enquanto entidade responsável pela condução dos registos de fusão, cisão e transformação transfronteiriças, estão ainda encarregues de de notificar as autoridades competentes dos Estados-Membros envolvidos no processo em questão, através do sistema de interconexão dos registos da União Europeia, sobre o registo, a emissão de certificado prévio e o início da produção de efeitos da operação de reestruturação societária relativamente a cada uma das sociedades envolvidas.

 

Conclusão

Esta alteração legislativa de origem comunitária dá um importante contributo no sentido da harmonização das regras aplicáveis às fusões, cisões e transformações transfronteiriças.

Por outro lado, o diploma procura, na senda da Diretiva, conciliar o objetivo de estabelecimento de um mercado interno sem fronteiras com a necessária proteção social e com a promoção do diálogo social, enquanto objetivos de integração europeia, através do estabelecimento de regras destinadas ao reforço da proteção dos trabalhadores, dos credores e dos sócios.

Conhecimento