Proposta de Lei para startups e scaleups
No passado dia 22.12.2022, o Governo apresentou à Assembleia da República a Proposta de Lei n.º56/XV, (a “Proposta”) que visa, com base na EU Startup Nations Standard of Excellence[1], criar as regras gerais para a promoção do ecossistema das startups e scaleups em Portugal, pretendendo-se estimular a criação de entidades assim definidas através da adoção de determinadas definições legais, mecanismos de certificação e criação de regimes fiscais especiais.
A Proposta, contudo, muito virada para os temas fiscais, limitou-se a tratar dessas três questões pontuais, deixando em aberto outros temas relevantes como (i) modalidades de investimentos em startups; (ii) regras de stock options, entre outros.
A equipa da Abreu Advogados apresenta 4 questões essenciais para um melhor entendimento da Proposta.
- O que distingue os conceitos de startup e scaleup?
A Proposta define startup com a verificação cumulativa de um conjunto de condições por uma pessoa coletiva (cfr. artigo 2.º da Proposta), a saber:
- exercício de atividade por período inferior a 10 anos;
- empregar menos de 250 trabalhadores;
- ter um volume de negócios que não exceda 50 milhões de euros anualmente;
- não resultar de uma cisão de uma grande empresa, não detendo, direta ou indiretamente, no seu capital social qualquer participação maioritária ou minoritária de uma grande empresa;
- ter sede ou pelo menos 25 trabalhadores em Portugal e;
- cumprir uma das seguintes condições:
- Ser considerada como empresa inovadora com um elevado potencial de desenvolvimento, com um modelo de negócio, produtos ou serviços inovadores, enquadrando-se nos termos definidos pela Portaria n.º195/2018, de 5 de julho [2] ou;
- Tenha sido reconhecida pela ANI – Agência Nacional de Inovação, S.A., como idónea na prática de atividades de investigação e desenvolvimento ou certificação do processo de reconhecimento de empresas do setor da tecnologia ou;
- Tenha concluído, pelo menos, uma ronda de financiamento de capital de risco por entidade legalmente habilitada para o investimento em capital de risco sujeita à supervisão da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, ou de autoridade congénere ou;
- Tenha sido objeto da aportação de instrumentos de capital ou quase capital por parte de investidores que não sejam acionistas fundadores da empresa, nomeadamente por business angels, certificados pelo IAPMEI – Agência para a Competitividade e Inovação, I.P ou;
- Tenha recebido investimento do Banco Português de Fomento, S.A., ou de um dos fundos por este geridos, ou de um dos seus instrumentos de capital ou quase capital.
Nota-se, portanto, que para uma pessoa coletiva ser enquadrada como uma startup, a mesma deverá cumprir com uma série de requisitos, alguns dos quais podem constituir uma barreira á classificação de determinadas empresas inovadoras e que são habitualmente consideradas como startups pelo mercado apenas porque não cumprem com um determinado padrão pré-estabelecido; basta aqui pensar, a título de exemplo, no número mínimo de trabalhadores necessário para se ser startup.
Adicionalmente, “o elevado potencial de desenvolvimento” da entidade, alicerçado num “modelo de negócios, produtos ou serviços inovadores” ou, alternativamente, a “reconhecida idoneidade na pratica de atividades de investigação e desenvolvimento ou certificação do processo de reconhecimento de empresas do setor da tecnologia” podem não ser condições essenciais ao preenchimento do conceito de startup, visto que, de acordo com a Proposta, um simples investimento através de instrumentos de capital ou quase capital na respetiva entidade por parte de bussiness angels certificados, já preencherá um dos requisitos para a definição e certificação como startup dispensando características como inovação, potencial de crescimento e de desenvolvimento tecnológico.
De facto, neste ponto, a Proposta consubstancia um desvio face à declaração ministerial que motiva a Proposta e parece-nos ser única numa perspetiva de Direito comparado.
Na verdade, a declaração ministerial parece, ainda que indiretamente, confinar o conceito de start up às entidades que, através da sua atividade, ofereçam soluções inovatórias, contribuindo para a “EU’s technological sovereignty and open strategic autonomy”.
Aliás, dentro da União Europeia, e exatamente na sequência da adoção da referida declaração ministerial, alguns países já promoveram internamente a regulação normativa desta matéria. Em Espanha, por exemplo, através da Ley 28/2022, de 21 de diciembre, faz-se imperativamente depender o reconhecimento da condição de startup da circunstância de a entidade “desarrolar un proyecto de emprendimineto innovador que cuente com un modelo de negocio escalable, según lo previsto en el artículo 4” [3]
Noutras jurisdições terceiras, como, por exemplo, no Brasil, o conceito de startup mostra-se também confinado às “organizações empresarias ou societárias, nascentes ou em operação recente, cuja atuação caracteriza-se pela inovação aplicada a modelo de negócios ou a produtos ou serviços ofertados”[4] .
A desvalorização operada pela diluição do critério da inovação, associado ao modelo de negócios ou aos produtos produzidos e à escalabilidade do negócio, e decorrente do seu funcionamento meramente alternativo com critérios empresariais (por exemplo, como o investimento anterior por business angels) é, a nosso ver, um ponto a ter em atenção.
Em último caso, o Estado – através de uma entidade de natureza privada, como já se explorará – reconhecerá o estatuto de startup pela simples constatação de decisões de investimento passadas – completamente desconhecidas nos seus pressupostos e fundamentos económicos e que até se podem mostrar, à data do reconhecimento, já totalmente falhadas – por entes privados que, ainda que “certificados”[5], não serão, com certeza, infalíveis.
Admite-se que a opção por esta alternatividade resida na antecipação por parte do legislador da dificuldade na aplicação concreta de conceitos como, por exemplo, “elevado potencial de investimento” ou “modelo de negócio, produtos ou serviços inovadores”. Julga-se, todavia, que o legislador não se pode demitir do esforço de densificação dos conceitos que permita ultrapassar ou mitigar essas dificuldades práticas, designadamente, através de regulamento.
Se assim não for, haverá uma transfiguração do diploma, pelo excessivo alargamento do seu universo de destinatários, preterindo-se a sua raison d´être – a proteção e o incentivo de empresas que contribuam com soluções inovatórias, ajudando a construir a “EU´s technological sovereignty”.
A par do conceito de startup, introduz-se o conceito de scaleup (artigo 3.º da Proposta) sendo esta a pessoa coletiva que (i) exercendo a atividade há mais de 10 anos, (ii) empregando mais de 250 trabalhadores e (iii) tendo um volume de negócios que excede 50 milhões de euros, ainda assim, “reúne as condições necessárias para a obtenção da certificação tech visa, nos termos da Portaria n.º328/2018, de 19 de dezembro, na sua redação atual”.
A distinção entre um e outro conceito passaria assim a residir apenas em características operacionais da scaleup (por exemplo, e como já previsto, o volume de negócios, o número de empregados ou o tempo de atividade).
- O que será necessário fazer para obter o reconhecimento do estatuto de startup e de scaleup?
De acordo com a Proposta (cfr. artigo 4.º, n.º1), o reconhecimento de startup e de scaleup realiza-se através de procedimento de comunicação prévia à Startup Portugal, exclusivamente por meios eletrónicos.
Tal entidade produzirá um documento digital certificativo do estatuto em causa que seria, igualmente, disponibilizado no portal único de serviços públicos (cfr. artigo 4.º, n.º3).
A Startup Portugal deverá, ainda, manter no seu sítio eletrónico uma lista atualizada de startups e scaleups reconhecidas.
A manutenção do status de startup ou de scaleup dependerá de confirmação trianual pela Startup Portugal dos pressupostos necessários para a obtenção do estatuto. Devem, em qualquer caso, e no prazo de 30 dias, através do portal único de serviços públicos, as entidades que beneficiem de qualquer um dos estatutos comunicar à Startup Portugal qualquer facto que determine a inobservância dos requisitos da sua atribuição.
O procedimento de reconhecimento e cessação do respetivo estatuto de startup ou scaleup bem como a gestão da plataforma pública pela Startup Portugal onde será incluída a lista das entidades assim certificadas, será essencial para sabermos em que medida esse procedimento constituirá por si só uma nova barreira administrativa a um espectro de entidades que privilegia precisamente o contrário – desburocratização. Para uma resposta mais fundamentada teremos que esperar pela portaria – anunciada nesta Proposta – que ainda não conhecemos.
É importante ressaltar que a certificação de uma startup pela Startup Portugal, de modo a estar apta a receber rondas de investimento qualificados, por exemplo, é uma novidade legislativa. Neste ponto, o maior receio é, novamente, de se criar uma barreira de entrada para outras iniciativas inovadoras que ficam assim a depender de aprovação ou enquadramento prévio por qualquer tipo de instituição.
Destaca-se que as startups em geral nascem e dão os primeiros passos num ambiente não regulado ou à margem do ordenamento jurídico, pois o respetivo processo de inovação ainda não foi previsto pelo regulador ou (ainda) não merece deste uma atenção especial – inovação de circunvenção. Frisa-se, ainda, que a referida certificação, embora incluída numa Proposta que visa essencialmente benefícios fiscais, poderá obrigar o founder a ter uma chancela oficial como condição para o seu reconhecimento como startup ou scaleup para outros efeitos.
Frisa-se, também, a preocupação de se criar mais um procedimento ou requisito formal em um ambiente que transpira a liberdade de iniciativa e regras. É, inclusive, este o principal mecanismo e conceito do sandbox regulatório internacional. Ademais, deve-se atentar para o fato de que tais empresas têm como característica principal a experimentação e a exponencialidade. Ou seja, a procura pela obtenção de certificação pelas startups perante a Startup Portugal poderá ser em um volume ou escala inversamente proporcional ao nível da capacidade de resposta da mesma e, por consequência, provocar um entupimento ou uma demanda reprimida num segmento cuja agilidade e celeridade são essenciais. É, portanto, um ponto de atenção.
Como atrás descrito, a Proposta visa criar um quadro legal de incentivo à criação e desenvolvimento de empresas que se caracterizam por um modelo de negócio inovador ou com uma forte componente de inovação e que apresentem potencial para um rápido crescimento.
- Quais as principais alterações ao regime de tributação de startups e PME atualmente em vigor?
Desde logo, a Proposta prevê que a criação de um regime especial de tributação para as empresas que obtenham a classificação de startup e que optem por uma estratégia remuneratória assente em planos de opção e subscrição de valores mobiliários (stock-options plan), assente no diferimento do momento da tributação daqueles ganhos, do momento do exercício da opção (vesting) – conforme previsto no regime atualmente em vigor –, para o momento da efetiva alienação das participações sociais adquiridas por esta via ou, caso se verifique primeiro, para o momento da perda da qualidade de residente em território português, desde que mantidas por um período mínimo de 1 ano.
Adicionalmente, o regime ora proposto poderá aproveitar a empresas classificadas como micro, pequenas e médias empresas ou empresas de pequena-média capitalização (small mid cap) e àquelas que desenvolvam a sua atividade no âmbito da inovação.
Este regime prevê também que, no momento da tributação, apenas serão considerados 50% dos ganhos com as participações sociais, ficando sujeitos à taxa de 28% para efeitos de IRS, sempre que se verifique que o plano foi atribuído por entidade que, no ano anterior à concessão daquelas participações ao trabalhador, seja reconhecida como startup e que reúna um dos seguintes requisitos: i. seja classificada como micro, pequena ou média empresa; ii. desenvolva a sua atividade no âmbito da inovação.
No momento da alienação das participações sociais, os ganhos serão apurados pela diferença positiva entre o valor de venda e o preço de exercício da opção ou direito; já nos casos em que o titular das participações sociais perca o estatuto de residente em Portugal, os ganhos serão apurados pela diferença positiva entre o valor de mercado e o preço de exercício da opção ou direito (exit tax).
Excluem-se, no entanto, deste benefício previsto na Proposta, os sujeitos passivos que detenham uma participação igual ou superior a 10% do capital social ou dos direitos de voto, bem como os membros de órgãos sociais da entidade atribuidora do plano classificada como startup.
No momento da tributação caberá ao titular das participações sociais solicitar à entidade que as atribuiu, a confirmação de que esta reunia as condições previstas para beneficiar desde regime especial de tributação, sob pena de, a não verificação do cumprimento dessas condições, ou a ausência de resposta dessa entidade, resultar na responsabilidade subsidiária dessa entidade pelo imposto devido.
- Quais as alterações ao regime do SIFIDE II?
A Proposta de Lei vem estabelecer um reforço do sistema de incentivos fiscais em investigação e desenvolvimento empresarial (SIFIDE II), nomeadamente, pelo aumento da majoração, de 110% para 120%, para efeitos de dedução ao montante da coleta do IRC, das despesas que digam respeito a atividades de I&D associadas a projetos de conceção ecológica de produtos, e o aumento de 8 para 12 anos do prazo para dedução de despesas que, por insuficiência da coleta, não tenham sido deduzidas.
Por outro lado, deixarão de beneficiar da taxa incremental de 50%, para efeitos de dedução à coleta de IRC, as despesas com a participação no capital de instituições de I&D e contribuições para fundos de investimento SIFIDE II, passando a beneficiar apenas da taxa base correspondente a 32,5% (e não dos anteriores 82,5%).
Mais, verifica-se um aumento do período mínimo obrigatório, de 5 para 10 anos, de manutenção das unidades de participação nos fundos e o investimento em I&D. Por outro lado, passa a ser obrigatório que 90% do investimento desses fundos, seja em empresas dedicadas sobretudo a I&D, devendo verificar-se essa condição no prazo de 3 anos contados da aquisição das unidades de participação.
A Proposta prevê ainda novas regras de acesso aos benefícios fiscais, nomeadamente, pela introdução de regras de prevenção de situações de duplo benefício fiscal: (i) as empresas dedicadas sobretudo a I&D não podem beneficiar da dedução à coleta do IRC dessas despesas, quando estejam em causa aplicações relevantes no âmbito de I&D e desenvolvimento financiadas, direta ou indiretamente, por fundos de investimento no âmbito do SIFIDE II; (ii) deixam, também, de ser dedutíveis à coleta de IRC, despesas relativas à participação no capital de entidades dedicadas a I&D e fundos que realizem investimentos em empresas dedicadas a I&D, quando estas entidades tenham, entre elas, relações especiais.
Verifica-se também a introdução de obrigações de reporte: as entidades participantes devem, até ao final do mês seguinte ao da entrega da declaração periódica de rendimentos, informar que beneficiam do SIFIDE II relativamente ao montante relevante aplicado (i) as empresas participadas, no caso de participação no capital de instituições de I&D; (ii) a sociedade gestora, no caso de contribuições para fundos de investimento.
As alterações introduzidas pela presente Proposta de Lei deverão produzirão efeitos a partir do de 1 de janeiro de 2023, pelo que se prevê que, quer aos planos de opção atribuídos a partir de 1 de janeiro do presente ano, quer aos investimentos em I&D realizados a partir dessa data, deverão ser aplicadas as novas regras introduzidas pela Proposta ora analisada, ainda que o diploma entre em vigor em data posterior.
Num quadro europeu de acentuado desenvolvimento económico e foco no investimento em start-ups e no desenvolvimento de atividades no âmbito da inovação, a Proposta agora apresentada pelo Governo aproxima-se dos regimes que têm vindo a ser adotados por vários países da União. Se, por um lado, aproxima-se agora de países considerados na Europa como mais atrativos, como é o caso da Estónia e da Dinamarca, nomeadamente, pela implementação de medidas como o diferimento da tributação efetiva para o momento da alienação das participações e pela aplicação do regime de tributação das mais-valias, por outro, diferencia-se, nomeadamente, pela criação de uma exit tax, implementada por poucos países europeus, mas, sobretudo, pela criação de um regime complexo aplicável às startups – tanto no processo de reconhecimento do estatuto de startup, como na aplicação do regime especial de tributação.
[1] Disponível em https://www.portugal.gov.pt/download-ficheiros/ficheiro.aspx?v=%3D%3DBQAAAB%2BLCAAAAAAABAAzNDQxMwEAY9E%2BmQUAAAA%3D
[2] A Portaria n.º195/2018, de 5 de Julho visa definir o conceito de “setor da tecnologia” para efeitos de dar cumprimento ao disposto no n.º7, alínea b) do n.º3 do artigo 2.º do Código do IRS (que prevê uma isenção, em sede de IRS, dos ganhos auferidos por trabalhadores de empresas que sejam qualificadas como micro ou pequenas empresas que tenham sido constituídas há menos de seis anos e que desenvolvam a sua atividade no âmbito do setor da tecnologia)
[3] Cfr. artigo 3.º/1/g) da referida Ley.
[4] Cfr. artigo 4.º da Lei Complementar n.º182, de 1 de Junho de 2021 que veio instituir o “marco legal das startups e do empreendorismo inovador”
[5] O que, note-se, nem será obrigatório: a aportação de instrumentos de capital ou quase capital poderá ocorrer “por parte de investidores que não sejam acionistas fundadores da empresa, designadamente (negrito nosso) por business angels, certificados pelo IAPMEI – Agência para a Competitivdade e Inovação, I.P. (IAPMEI I.P.)”