Especificidades da Transposição Portuguesa da Diretiva do Mercado Único Digital

A Diretiva do Mercado Único Digital (Diretiva UE 2019/790, doravante designada por “Diretiva MUD”) foi finalmente transposta em Portugal pelo Decreto-Lei n.º 47/2023, publicado a 19 de junho de 2023, que entrou em vigor dia 4 de julho.

A opção legislativa adotada foi a de transpor a diretiva através de uma alteração ao Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (Decreto-Lei n.º 63/85, de 14 de março) e de dois diplomas avulsos (i) o Decreto-Lei n.º 122/2000, de 4 de julho, na sua redação atual, que transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva 96/9/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março, relativa à proteção jurídica das bases de dados, e (ii) a Lei n.º 26/2015, de 14 de abril, na sua redação atual, que regula os organismos de gestão coletiva do direito de autor e dos direitos conexos, incluindo quanto ao estabelecimento em território nacional e à livre prestação de serviços das entidades anteriormente estabelecidas noutro Estado membro da União Europeia e revoga a Lei n.º 83/2001 de 3 de agosto.

O Decreto-Lei n.º 47/2023, no essencial e em linha com a Diretiva MUD:

(i) Introduz novas exceções destinadas a: facilitar a prospeção de dados em massa; permitir a caricatura, paródia ou pastiche de conteúdos protegidos por direitos de autor; promover a conservação do património cultural; permitir a ilustração didática num ambiente em linha de conteúdos protegidos por direitos de autor;

(ii) Introduz as definições de “Publicação de Imprensa” e “Editores de Imprensa”;

(iii) Concede um (novo) direito conexo aos editores de imprensa, relativo às utilizações em linha das respetivas publicações de imprensa;

(iv) Introduz regras que tornam os prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha diretamente responsáveis pelas ações dos seus utilizadores que violem conteúdos protegidos por direito de autor e direitos conexos;

(v) Reforça a proteção dos autores, artistas e intérpretes no âmbito dos contratos que celebram.

 

Especificidades da Transposição Portuguesa:

  • Artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 47/2023 – Criação de um centro de arbitragem institucionalizado

De acordo com a exposição de motivos do Decreto-Lei n.º 47/2023 “é prevista a possibilidade de autorização para a criação de novo centro de arbitragem ou o alargamento de competências de centro de arbitragem já existente para a mediação e arbitragem institucionalizada em matéria de direitos de autor e conexos”.

Tal disposição corresponde ao artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 47/2023. De acordo com este último, nomeadamente com o seu n.º 4 “Salvo quando a lei expressamente previr o contrário, o recurso a centro de mediação e arbitragem especializado é facultativo”.

O recurso a este centro especializado de mediação e arbitragem é considerado obrigatório para determinados litígios: com editores de imprensa (relativos à concessão de autorização e ao cumprimento da obrigação de divulgação de informação) e também entre prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha e utilizadores desses serviços (decorrentes da remoção ou bloqueio de obras ou outro material protegido por eles carregado).

Até à data, este centro de arbitragem institucionalizada ainda não foi constituído e não existe ainda informação de quando o será. Não obstante, este Decreto-Lei prevê uma norma transitória, nomeadamente o n.º 4 do artigo 12.º, segundo a qual, até à constituição e início efetivo do funcionamento do centro de arbitragem institucionalizado, é aplicável o disposto na Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro, para a resolução por via arbitral, e na Lei n.º 29/2013, de 19 de abril, para a resolução por via de mediação.

 

  • Artigo 12.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 47/2023 – Licenças coletivas com efeitos alargados para publicações de imprensa dos editores de imprensa regional até 31 de dezembro de 2028

De acordo com esta norma transitória, os editores de imprensa regional consideram-se representados por organismos de gestão coletiva, salvo se optarem por não o fazer ao abrigo do artigo 36.º-A da Lei n.º 26/2015 (que transpõe o artigo 12.º da Diretiva DSM).

 

  • Artigo 188.º-A, n.º 2, alínea c), do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos – falta de concretização de “excertos muito curtos”

O Decreto-Lei n.º 47/2023 não esclarece o que se entende por excertos muito curtos, no âmbito das exceções ao novo direito conexo agora previsto no Artigo 188º-A do Código de Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

 

  • Artigo 188.º-B, n.ºs 4 e 5, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos – situações específicas em que os prestadores de serviços da sociedade da informação não são obrigados a divulgar informações aos editores de imprensa

Os n.ºs 4 e 5 do artigo 188.º-B preveem situações específicas em que os prestadores de serviços da sociedade da informação não são obrigados a divulgar informações relevantes e fiáveis sobre a utilização das publicações de imprensa pelos seus utilizadores (quando a divulgação dessas informações implique a divulgação de segredos comerciais, a transmissão não autorizada de conteúdos protegidos por direito de autor ou outros direitos exclusivos ou implique a transmissão ilícita de dados pessoais; ou quando essa divulgação encontra-se condicionada pela adoção de medidas ou garantias de confidencialidade, respetivamente).

 

  • Artigo 175.º-C. n.º 4, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos – manutenção de cópias de conteúdos ilícitos como medida adicional para ajudar a impedir o carregamento de conteúdos anteriormente removidos

O n.º 4 do artigo 175.º-C parece acompanhar a jurisprudência do TJUE (em especial o processo C-18/18 e o processo C-401), no que se refere à obrigação específica de controlo (pesquisa de conteúdos pré-identificados) ou de “filtragem”, prevista no n.º 4, alínea c), do artigo 17 da Diretiva MUD. No entanto, da atual redação não resulta claro se se trata, de facto, de uma obrigação e quais os casos específicos em que os prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha devem manter cópias de conteúdos ilícitos (“sempre que necessário”).

De facto, parece-nos que o legislador português procurou encontrar um equilíbrio, não prevendo uma “obrigação”, mas antes uma medida adicional para ajudar a impedir o carregamento de conteúdos que tenham sido anteriormente removidos ou bloqueados.

 

  • Artigo 195º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos – alteração do crime de usurpação

De acordo com o Decreto-Lei n.º 47/2023, ” Comete o crime de usurpação quem, sem autorização do autor ou do artista, do produtor de fonograma e videograma, do organismo de radiodifusão ou do editor de publicação de imprensa, utilizar uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas no presente Código“.

No entanto, tal conduta não é punível “quando o prestador de serviços de partilha de conteúdos em linha cumpra as condições previstas, consoante os casos, no n.º 1 do artigo 175.º -C ou nos n.os 1 e 2 do artigo 175.º -D“(estas condições correspondem às previstas nos n.ºs 4 e 6 do artigo 17.º da Diretiva MUD).

Esta solução legal suscita algumas questões, em particular a de saber se a mesma é suficiente para colmatar a lacuna legal sobre a responsabilidade penal das pessoas coletivas pelo crime de usurpação. Note-se que, no direito português, as pessoas coletivas só podem ser responsabilizadas criminalmente por crimes se estiverem expressamente previstas na lei, ou seja, tem de haver uma norma habilitante (artigo 11.º do Código Penal português).

Esta alteração ao crime de usurpação só entrará em vigor a 1 de janeiro de 2024.

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