De Vez? – Promulgação da Lei dos Metadados

Já dizia a sabedoria popular que às três… é de vez; será?

No passado dia 29 de janeiro de 2024, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, promulgou (prescindindo de novo escrutínio pelo Tribunal Constitucional) a reformulação da chamada Lei dos Metadados, publicada sob o nº 5/2024, de 5 de fevereiro, disponível aqui, após a declaração de inconstitucionalidade de alguns preceitos da Lei 32/2008, de 17 de julho, em 2022, e da declaração de inconstitucionalidade da primeira reformulação, em 2023.

Deixamos abaixo as principais alterações, que terão motivado a aprovação deste diploma, bem como uma sinopse explicativa da importância deste tema, que tanto impacto tem na privacidade e na liberdade das comunicações em Portugal.

 

As Novidades: o que Mudou a Assembleia?

Procedendo a uma análise sistemática, o Parlamento começou por acrescentar a obrigação de conservar os dados recolhidos em território português ou de outro Estado-membro da União Europeia, em respeito dos princípios impostos pela Lei de Proteção de Dados, nomeadamente pelo Regulamento Geral de Proteção de Dados.

Optou depois por manter, no art.4º, a identificação das mesmas categorias de metadados que eram anteriormente contempladas na lei, não tendo, nessa medida, especificado em maior medida quais os metadados que devem ser recolhidos (e estão sujeitos a obrigatoriedade de transmissão para o Ministério Público após autorização judicial de Juiz de Instrução) e quais os que devem ser eliminados.

Ao invés, procurando responder aos dois anteriores juízos de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional sobre esta matéria, o texto acordado na Assembleia estendeu o art.6º para abranger não apenas o período de conservação dos metadados, mas também as regras sobre a sua conservação, determinando que:

  • Dados relativos à identificação civil dos assinantes, endereços de IP e dados de base (relativos à conectividade à rede de telecomunicações) devem ser conservados pelos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações (“os fornecedores”) durante um ano;
  • Dados de tráfego e localização apenas podem ser conservados mediante autorização judicial fundamentada, a pedido do Ministério Público, por requerimento a ser decidido em 72h, e apenas devem ser conservados durante o tempo “estritamente necessário para a prossecução da finalidade” para que são recolhidos, devendo os fornecedores abster-se de conservar ou aceder a esses metadados para quaisquer outros fins.

Por fim, passou a prever o art.9º que, quando exista transmissão deste metadados para o Ministério Público, sob autorização de um juiz de instrução criminal, o despacho que autoriza essa transmissão seja notificado ao titular dos dados no prazo máximo de 10 dias contados da data em que foi proferido.

 

Contexto: O que são Metadados e porque afetam Direitos Fundamentais?

Metadados são, como bem observa o Parlamento Português (aqui), “dados sobre dados” ou, noutra formulação, são pedaços de informação que permitem caracterizar outra informação, identificando-a, descrevendo-a ou localizando-a. Por isso mesmo, o facto de metadados não permitirem identificar o conteúdo de uma determinada comunicação (que não permitem) não significa que estes dados sejam inúteis na criação de perfis e no controlo/supervisão da conduta do remetente e do destinatário da mesma. De facto, os chamados metadados permitirem identificar o remetente de uma comunicação, o seu destinatário, a sua composição, método e duração, bem como a localização do destinatário e remetente aquando da receção e envio da comunicação.

Considerando este risco, de se imiscuir a análise de metadados na privacidade e na liberdade dos envolvidos, o Tribunal de Justiça da União Europeia veio, em 2014, declarar contrária ao Direito fundamental da União a Diretiva 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, que permitia a conservação e utilização, pelo Ministério Público, de dados gerados ou tratados no contexto de comunicações eletrónicas. Tal decisão, por sua vez, motivou declarações de inconstitucionalidade, revogações e reformulações por toda a Europa, dos instrumentos legais que tinham implementado aquela Directiva.

Em Portugal, apenas em 2022 foram os artigos 4º, 6º, e 9º, da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho (que permitiam, essencialmente, a recolha e o armazenamento, bem como a transmissão, sem notificação aos interessados, de metadados generalizados em comunicações eletrónicas indiferenciadas, de todos os indivíduos que as produzissem) declarados inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional (por Acórdão disponível aqui), na parte em que, precisamente, permitiram aquela recolha indiscriminada e a sua transmissão sem notificação. Desde então, a Assembleia da República havia já proposto nova formulação para aqueles enunciados, em outubro de 2022, tendo a mesma sido chumbada por decisão de dezembro de 2023 (disponível  aqui), por se entender que se mantinham as lesões ao direito à privacidade da vida íntima e dos dados pessoais.

 

Os Próximos Passos: … de Vez?

Não tendo o Presidente da República levantado dúvidas de inconstitucionalidade, o diploma foi promulgado e será, em breve, integrado no sistema jurisdicional nacional. Resta apenas aguardar a sua implementação e o desenrolar natural da situação para aferir da sua justiça. Satisfará esta formulação os crivos do Tribunal Constitucional em fiscalização concreta? Existirão ainda quesitos constitucionais por averiguar? E que dizer da obrigatoriedade de as autoridades de investigação darem conhecimento da análise de metadados aos objetos das suas investigações? Será que, de facto, às três é de vez?

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