
05.02.2021
Áreas de Prática: Propriedade Intelectual e Tecnologias de Informação
O novo Código da Propriedade Industrial e as Marcas Não-tradicionais
Em 1 de Julho de 2019 entrou em vigor um novo Código da Propriedade Industrial (CPI) [Decreto-Lei n.º 110/2018], o qual trouxe mudanças significativas, algumas das quais resultado da transposição da Diretiva (EU) 2015/2436 do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de Dezembro de 2015 que aproxima os Estados-membros em matéria de marcas.
A mudança mais digna de nota no regime de marcas consiste na eliminação do requisito de representação gráfica.
Assim, o novo CPI prevê que a marca pode ser constituída por “um sinal ou conjunto de sinais suscetíveis de representação gráfica (…) ou por um sinal ou conjunto de sinais que possam ser representados de forma que permita determinar, de modo claro e preciso, o objeto da proteção conferida ao seu titular, desde que sejam adequados a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas.”.
Isto significa que o requerente de um pedido de registo de marca já não necessita de apresentar uma representação gráfica da marca a ser registada. Agora apenas é exigida uma representação clara e precisa desse sinal distintivo.
A eliminação do requisito de representação gráfica é uma mudança relevante, uma vez que abre caminho para o registo de marca não-tradicionais com recurso a meios tecnológicos, aumentando exponencialmente as possibilidades de registo deste tipo de marcas.
Em relação a alguns tipos de marcas não-tradicionais que já eram aceites, a eliminação do requisito de representação gráfica também torna o procedimento de pedido de registo bastante mais simples. Por exemplo, embora já fosse possível fazer um pedido de registo de marca composto por sons, mediante a apresentação de pauta de música com vista a respeitar a exigência de representação gráfica, a partir de agora o requerente poderá simplesmente apresentar um ficheiro de áudio. O mesmo se aplica às marcas dinâmicas/de movimento, cujo pedido de registo passa a ser muito mais simples, uma vez o que o requerente pode apresentar um ficheiro de vídeo em vez de uma série de imagens estáticas que capturam o movimento. O processo de registo de marcas de holograma também se tornou mais fácil, uma vez que a reprodução fotográfica em múltiplas imagens pode ser agora substituída por um ficheiro de vídeo.
Em face desta alteração, é provável que surjam em Portugal marcas sonoras e de movimento / dinâmicas, acompanhando as novas tendências de registo de marcas a nível europeu, como a música de abertura da Twenty Century Fox[1] e o aperto de mão da Nokia[2], entre outras.
O primeiro pedido de registo de marca sem recurso a representação gráfica foi apresentado junto do Instituto Nacional da Propriedade Industrial pouco depois da entrada em vigor do novo CPI, mais concretamente em 16 de agosto de 2019. A marca em questão[3] consiste numa marca dinâmica/de movimento, para assinalar produtos e serviços nas classes 9, 35, 42 e 45 da Classificação Internacional de Nice e foi apresentado por uma empresa portuguesa com atividade comercial na área da inteligência artificial. Este pedido de registo de marca foi publicado no Boletim da Propriedade Industrial em 20 de setembro de 2019 e, no campo disponível para efeitos de reprodução do sinal, surge o link para o ficheiro mp4 apresentado pela requerente. Este registo de marca foi entretanto concedido e consiste no primeiro de muitos pedidos de registos de marca esperados com recurso aos novos formatos permitidos por lei.
Uma vez que o requisito da representação gráfica foi eliminado é também de esperar que, através de meios tecnológicos, muitos outros pedidos de registo de marcas sejam apresentados, tais como marcas olfativas, gustativas, constituídas por hologramas e tácteis.
Por exemplo, quem não se lembra de Cristiano Ronaldo ao gritar a saltar numa pirueta no ar e a atirar os braços para o lado ao marcar um golo? O grito deste lendário jogador de futebol pode agora ser repetido por meios tecnológicos de forma facilmente acessível, inteligível, duradoura e objetiva. Estas características – fácil acessibilidade, inteligibilidade, durabilidade e objetividade -, inerentes à reprodução sonora, poderão eventualmente permitir o registo da referida marca sonora, nomeadamente através da apresentação de um ficheiro áudio. O mesmo é aplicado ao movimento, o qual pode ser reproduzido por um ficheiro de vídeo. E porque não uma marca multimédia, composta pelo som do grito e pelo movimento, a qual poderá ser apresentada por um ficheiro audiovisual?
Do mesmo modo, pode discutir-se se um odor característico do interior das lojas de uma cadeia de retalho ou de uma loja de uma cadeia de fast food pode ser registado como marca olfativa. A marca constituída por esse cheiro distinguiria os serviços prestados, atraindo o cliente para o interior do estabelecimento e relembrando-o constantemente desses serviços aquando da presença desse odor.
Porém, no que diz respeito, por exemplo, às marcas olfativas, a eliminação da necessidade de representação gráfica não significa necessariamente que esse tipo de marca possa ser registado (ou, pelo menos, que esse registo não seja desafiante). Com efeito, a tecnologia atual ainda não permite uma representação duradoura de uma marca olfativa, embora essa possibilidade possa surgir num futuro próximo como consequência do progresso tecnológico. Os consumidores também têm de ser capazes de distinguir o cheiro que compõe a marca registada e a verdade é que as pessoas têm perceções completamente diferentes do mesmo cheiro. E como será publicada uma marca composta por um odor? É importante ainda assinalar que a marca registada deve ser facilmente apreendida por quem for realizar as pesquisas nas bases de dados oficiais do Instituto Nacional da Propriedade Industrial.
Até agora, apenas o registo da famosa marca com a descrição “The smell of fresh cut grass”, para “bolas de ténis” (classe 28 da Classificação Internacional de Nice)[4] foi concedido pelo EUIPO, em 11 de Outubro de 2000. Esse registo não foi renovado em 2006 e caducou.
E em relação ao registo do sabor distintivo de um produto alimentar como marca gustativa? Os desafios levantados sobre o registo de marcas olfativas também se aplicam a este tipo de marcas. Na verdade, como é que o requisito de durabilidade do registo da marca pode ser cumprido?
Acresce que, uma marca gustativa só pode ser apreendida pelo consumidor depois de o consumidor ter provado o produto, o que pode, de algum modo, ser o oposto de um sinal distintivo. Além disso, a marca pode ser apreendida de maneiras diferentes pelos consumidores, dependendo de como cada pessoa saboreia o produto que a marca distingue. Além disso, o sabor não pode ser separado do produto. Quem sabe, talvez num futuro próximo um software para papilas gustativas possa ajudar a registar marcas gustativas?
A falta de eficácia distintiva também foi suscitada em vários processos de registo de marcas, tais como o famoso caso conhecido como “o sabor a morango artificial”, no qual a Eli Lilly and Company pediu o registo no EUIPO para assinalar “preparações farmacêuticas” (classe 5)[5], o qual foi recusado com o fundamento de que “qualquer fabricante de produtos farmacêuticos tem o direito de acrescentar o sabor de morango artificial aos seus produtos com a finalidade de disfarçar qualquer gosto desagradável que eles poderiam ter ou simplesmente com a finalidade de os tornar agradáveis ao paladar. Se ao recorrente fosse dado um direito exclusivo de utilizar esse sinal (…), isso iria interferir indevidamente na liberdade dos seus concorrentes.”.[6]
No que diz respeito às marcas olfativas, às quais se aplica o mesmo raciocínio das marcas gustativas, é importante relembrar o “Caso Sieckmann”, no âmbito de um reenvio prejudicial apresentado no Tribunal de Justiça da União Europeia provocado por uma decisão de recusa do registo de uma marca olfativa por parte do Instituto Alemão de Marcas e Patentes. O recorrente, Ralf Sieckmann, advogado de Propriedade Intelectual, pediu o registo de uma marca olfativa no Instituto Alemão para distinguir serviços das classes 35, 41 e 42. No formulário de registo, o Sr. Sieckmann referiu-se a uma descrição junta como anexo ao pedido, que era a seguinte: “A proteção da marca é pedida para a marca olfativa (…) para a substância química pura cinamato de metilo (éster metílico de ácido cinâmico) cuja fórmula química se reproduz seguidamente. Também se podem obter amostras desta marca olfativa através dos laboratórios locais referenciados nas páginas amarelas da Deutsche Telekom AG ou através da empresa E. Merck, em Darmstadt. C6H5-CH = CHCOOCH3”. Além dessa descrição, o requerente do registo depositou ainda uma amostra do odor do sinal e a descrição do aroma em apreço como sendo “balsâmico-frutado com ligeiras notas de canela””.
Apesar de o TJUE ter afirmado que uma marca pode consistir num sinal que não é, em si mesmo, suscetível de ser visualmente percetível, determinou que a representação gráfica deve ser “clara, precisa, completa por si própria, facilmente acessível, inteligível, duradoura e objetiva” e concluiu que, no que respeita a um sinal olfativo, “os requisitos da representação gráfica não são cumpridos através de uma fórmula química, de uma descrição por palavras escritas, da apresentação de uma amostra de um odor ou da conjugação destes elementos.”.
Os “sete critérios Sieckmann” estão agora mencionados no Considerando 13 da Diretiva (EU) 2015/2436, apesar de o requisito da representação gráfica ter sido eliminado. Iremos ver como, nos próximos anos, os Institutos nacionais, o EUIPO e os tribunais, incluindo o TJUE, aplicarão os critérios Sieckmann em conjunto com a eliminação do requisito de representação gráfica.
Com efeito, mesmo considerando que a visão restritiva sobre o caso Sieckmann se devia à exigência de representação gráfica, as marcas não tradicionais continuarão a enfrentar muitos desafios.
De facto, a representação de marcas não tradicionais deve assegurar que a marca seja registada da forma mais clara possível, a fim de ser apreendida pelo Instituto, pelos titulares e por terceiros. Tal representação deve ser duradoura, a fim de assegurar a integridade da marca durante o período de vida do seu registo, permitindo ao Instituto e a todas as partes interessadas a perceção do âmbito de proteção do sinal distintivo, nomeadamente para o comparar com novos pedidos de registo de marca ou para fazer o seu enforcement. Os meios tecnológicos devem ser capazes de assegurar que a marca perdura da mesma forma que a durabilidade da representação gráfica tem sido garantida até agora. Isto é especialmente importante dado que o registo de um direito de marca, em Portugal e na União Europeia, é válido por um período de dez anos a partir da data do pedido e pode ser renovado indefinidamente por períodos adicionais de dez anos. A representação deve também ser objetiva, a fim de refletir fielmente a marca em questão.
Dado que o registo estabelece o âmbito da proteção do direito de marca, a sua representação deve ser “clara” e “precisa”, a fim de proporcionar segurança jurídica.
Em face do exposto, algumas marcas não tradicionais, como as marcas olfativas e gustativas, enfrentarão diversos desafios, sendo comum o entendimento de que os meios tecnológicos existentes ainda não permitem a representação de uma marca que preencha os requisitos acima mencionados.
Além disso, a falta de eficácia distintiva dessas marcas também foi levantada em muitos processos de registo de marcas. Isso mostra que, embora a representação gráfica não seja mais necessária, as marcas não tradicionais ainda enfrentarão vários desafios práticos para serem registadas e terão que preencher o requisito da eficácia distintiva.
A verdade é que a eliminação da exigência de representação gráfica permite que os titulares de marcas se inspirem e aumentem a distância entre as suas marcas e as marcas de seus concorrentes. Além disso, permite que eles encontrem formas criativas de anunciar os seus produtos e serviços. O procedimento de registo também se tornou mais ágil para algumas marcas não tradicionais existentes, devido à eliminação dessa exigência, o que provavelmente aumentará o número de pedidos de registo de marcas.
Acreditamos que, ao eliminar a exigência da representação gráfica, o paradigma da existência, do objeto, do conteúdo e da proteção das marcas mudará significativamente, de uma forma que ainda não é percetível. Essa mudança é certamente inovadora, desafiadora e a imaginação (e, claro, a segurança jurídica) o limite.
[1] MUE n.º 012438628
[2] MUE n.º 3429909
[3] Marca nacional n.º 628854
[4] MUE n.º 000428870
[5] MUE n.º 001452853
[6] Decisão da 2.ª Câmara de Recurso do EUIPO, processo R 120/2001-2
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