Recentemente, a American Bar Association (ABA), uma importante associação de advogados dos Estados Unidos, publicou a Formal Opinion 512.
O parecer incide sobre o uso ético de ferramentas de Inteligência Artificial Generativa (GAI) por advogados, especialmente no que respeita à cobrança de honorários aos clientes. A Regra 1.5(a) do parecer, por exemplo, aborda a razoabilidade das cobranças pelo uso dessas ferramentas quando advogado e cliente estabelecem um modelo de honorários fixo ou por hora.
Por exemplo, se um advogado utilizar uma ferramenta de GAI que lhe permita entregar um trabalho mais rapidamente do que sem essa ferramenta, a ABA, através do parecer, defende que o valor cobrado deve ser revisto para menos, ou que o modelo de cobrança por hora deve refletir o tempo efetivamente gasto.
Naturalmente, o parecer gerou debates acalorados. Numa altura em que a GAI continua a ser um tema na ordem do dia e existe o receio, por parte da classe, de que muitas tarefas deixem de necessitar da expertise humana, o posicionamento da ABA merece críticas.
Em primeiro lugar, é essencial ter em conta o contexto e a cultura jurídica local. Nos Estados Unidos, é muito comum a cobrança de honorários por hora no setor jurídico, através do conhecido time-sheet. Existe, inclusive, forte resistência a outros modelos de cobrança, como o pagamento baseado num percentual do êxito, o success fee. Assim, não se pode aplicar este parecer indiscriminadamente a qualquer jurisdição, especialmente àquelas reguladas pelo sistema de civil law e suas particularidades.
Em segundo lugar, ainda que a posição da ABA possa ter fundamento sob uma perspetiva pragmática – afinal, se o advogado consegue realizar mais trabalho em menos tempo, não seria razoável cobrar o mesmo que cobraria por um serviço prestado de forma manual, como um artesão – há críticas relevantes a considerar.
Para os juristas brasileiros Luciano Benetti Timm e Wilton Gutemberg, esta visão baseia-se numa teoria económica ultrapassada: a teoria do valor-trabalho. Esta teoria sustenta que o valor monetário de um produto ou serviço advém da quantidade de trabalho necessária para o produzir.
No entanto, a teoria do valor-trabalho é característica do pensamento da época da Revolução Industrial, no século XVIII, quando os produtos e serviços tinham pouca diversidade e diferenciação. Com o desenvolvimento do capitalismo no século seguinte, o consumo passou a oferecer múltiplas possibilidades e variações, tornando a utilidade um fator mais relevante na definição do valor monetário.
Dessa forma, o tempo e o esforço empregados num produto ou serviço só terão peso na determinação do preço se corresponderem à utilidade percebida pelos seus destinatários. E essa utilidade é um elemento mais complexo do que a simples quantificação do tempo investido. Muitas vezes, um produto que exigiu menos tempo e esforço para ser produzido pode gerar benefícios superiores para o comprador, sejam eles estéticos, reputacionais ou funcionais, como lembram Timm e Gutemberg.
Os juristas vão além e criticam diretamente o parecer da ABA. Segundo eles, o mercado jurídico norte-americano tem-se protegido dessas mudanças de conceção. O modelo de cobrança por horas trabalhadas (billable hour) sobreviveu a pelo menos três revoluções industriais – a mecânica, a elétrica e a automação – e continua a ser o modelo predominante. Contudo, a quarta revolução industrial, com a introdução da IA e a consequente redução do tempo necessário para executar tarefas, atingiu em cheio o setor dos serviços, expondo a inadequação desse modelo.
É também importante notar que as ferramentas de GAI estão a transformar os modelos de cobrança no mercado jurídico. Por um lado, os serviços são prestados de forma mais rápida e eficiente, reduzindo o número de horas faturáveis. Por outro lado, é possível aumentar a escala dos serviços contratados, sobretudo os de menor complexidade. No final do dia, a equação torna-se positiva, reforçando que tecnologia, produtividade e inovação são os três pilares da sobrevivência de qualquer sociedade de advogados.
Por fim, sob um terceiro ponto de vista, é necessário clarificar as coisas. O conceito “more for less”, defendido pelo jurista britânico Richard Susskind há uma década, sugere que os profissionais do Direito devem adotar controlos de custos mais rigorosos e procurar maior eficiência na execução das suas tarefas. Uma das estratégias propostas passa precisamente pela adoção de ferramentas de GAI para atividades rotineiras, como revisão de documentos jurídicos, processos de due diligence, redação de contratos e pesquisa jurisprudencial.
Assim, o “more” refere-se à prestação de serviços com maior qualidade, enquanto o “less” se relaciona com eficiência e redução de custos, uma vez que a entrega é feita em menos tempo e sem necessidade de tantos profissionais envolvidos. Não há, portanto, uma relação direta entre o parecer da American Bar Association e o conceito de Susskind. Ou seja, o uso de ferramentas de GAI não significa, necessariamente, a redução do custo dos serviços jurídicos.
Afinal, a velha parábola do parafuso continua mais atual do que nunca. Conta-se que, certa vez, um técnico foi contratado para consertar um equipamento sofisticado e valioso. Ele apertou apenas um dos muitos parafusos da máquina e evitou um grande dano. Questionado sobre a simplicidade da tarefa e o motivo pelo qual cobrou um euro para apertar o parafuso e mil euros por saber qual parafuso apertar, a resposta não poderia ser mais apropriada – e dirigida à American Bar Association: o valor está no conhecimento e não apenas na execução.