O advento dos assistentes virtuais baseados em inteligência artificial, ou chatbots, nos seus mais variados modelos e formatos, tem provocado grandes e polêmicos debates. De um lado os entusiastas, que enxergam nestes recursos uma nova e inesgotável fronteira para o conhecimento e incremento das mais diversas atividades profissionais. De outro lado, os mais céticos, que questionam a veracidade das fontes e coerência dos conteúdos criados pelos algoritmos desses mecanismos. Questionam, ainda, um potencial viés discriminatório e de violação de direitos autorais, bem como os impactos no mercado de trabalho.
Contudo, a única certeza é que esses assistentes virtuais, como o Chat-GPT, são inexoráveis, ou seja, e tal como o caminho das águas, nas palavras de Kevin Kelly, da Revista norte-americana Wired, não há como impedir o seu avanço. Mas como extrair o melhor de humanos e máquinas e reconhecer a inevitável complementariedade de ambos e não a substituição? Como fazer delas um uso ético e responsável, de modo, por exemplo, a não se tolerar preconceitos, disseminação de falsos discursos e cometimento de plágio?
Existem inúmeras definições de Inteligência Artificial (IA). Segundo Dora Kaufman, em um perspectiva simplificada, podemos pensar a IA como a reprodução de todos os comportamentos que o cérebro humano controla. No entanto, o processo mental da Inteligência Artificial superaria o processo mental humano. É o exemplo de uma calculadora. Por óbvio, não podemos competir com a sua capacidade de realizar um cálculo complexo, cuja resposta demandaria um tempo demasiadamente maior se realizada por um humano, quiçá não resolvido. Ou seja, a capacidade da IA ultrapassa as limitações humanas como observa-se em distintas situações do cotidiano com o uso de tecnologias apropriadas.
O conceito da inteligência relacionado às máquinas, de igual modo, também abarca um luxo de definições. É o caso de se citar o famoso Turing Test, do matemático e cientista da computação britânico Alan Turing. Na época, Turing propôs encontrar uma definição que se aplicasse tanto a homens quanto a máquinas, de modo que estas seriam ou não inteligentes se passassem em um teste. Polêmicas a parte, e mais de meio século depois, a única certeza é que não podemos ousar a desafiá-las, pois como bem lembra Kaufman, dois eventos recentes e correlacionados galvanizaram as pesquisas em IA: a explosão de uma enorme quantidade de dados na internet (Big Data) e a técnica Deep Learning[1].
Daí, então, que investimentos maciços em pesquisa e desenvolvimento – duas palavras que colocam qualquer nação e empresas à frente das outras, ao explorar essas duas frentes, trouxe à baila ferramentas de conversação (chatbots) baseadas em inteligência artificial generativa (GenAI). Trocando em miúdos: um tipo de inteligência que utiliza algoritmos capaz de gerar conteúdos, tais como texto, imagens, vídeos, entre outros, cuja qualidade é tão alta, tão alta, que é difícil distingui-la daquela criada por um humano.
O recém advento da área, notadamente o Chat-GPT, da empresa norte-americana Open AI, fez abrir, contudo, uma espécie de Caixa de Pandora. Todas as mazelas e clichês historicamente apontados para as máquinas, como no temor de que finalmente elas irão substituir os humanos, voltaram a ser o hot topic. Mas como também na mitologia grega, existe a esperança, ou seja, de que a GenAI permitirá um avanço exponencial do conhecimento científico em favor da humanidade e fazer a raça humana andar para frente, parafraseando o beatnik Jack Kerouac.
Um guia, portanto, e no seu melhor sentido denotativo, procurará dar uma direção ao debate, apresentando caminhos para uma utilização da GenAI de forma ética, responsável e, principalmente, em conformidade com o ordenamento jurídico. É sabido, contudo, e assim como qualquer outro recurso baseado em inteligência computacional, que caberá ao usuário proceder corretamente com os seus inputs, na medida em que a GenAI, inclusive na mais popular delas, o Chat-GPT, requer determinadas cautelas e cuidados.
Com efeito, a qualidade do texto gerado pelo Chat-GPT é tão alta que é difícil distingui-lo daquele escrito por um humano, o que tem benefícios e riscos. Nesse sentido, destacamos abaixo cinco boas práticas de modo que o usuário e a coletividade possam utilizá-las e explorá-las.
Antes, no entanto, é preciso adotar sempre os três pilares a seguir, formando um autêntico “tripé”, quais sejam: (i) uso justo e responsável; (ii) ético; e (iii) socialmente impactante, e a saber:
- Uso justo: dentro do conceito de fair use, a utilização da GenAI deverá ser responsável, de modo que não provoque danos a terceiros, como no caso de se disseminar discursos de ódio, discriminatórios, reverberar fatos caluniosos ou inverídicos. Advirta-se, ainda, que o não atendimento desta prática poderá provocar efeitos nocivos, gerando danos de imitada extensão para os ofendidos e, por natural, a responsabilização civel e criminal para os autores e ofensores.
- Ético: As ferramentas de GenAI, que ainda estão (e sempre estarão) em aperfeiçoamento (frisa-se que o Chat-GPT ainda é uma versão beta), por vezes apresentam respostas que, inicialmente, parecem plausíveis, mas estão incorretas, sem sentido e carecem de fontes fidedignas. Esse comportamento é comum a grandes modelos de linguagem e é conhecido, na ciência da computação, como de “alucinação de inteligência artificial”. Logo, e por mais que soe clichê, ferramentas de conversação baseadas em inteligência artificial generativa não são um fim em si mesmo, mas de meio, ou seja, são auxiliadoras das atividades e não a ponta final. Não substituirá o professor, o advogado, o médico, o aluno, o publicitário, o contato entre vendedor e cliente, porém funcionando como um recurso hábil e incremento para a execução dessas tarefas. Logo, um trabalho científico ou um diagnóstico médico jamais poderão ser concebidos única e exclusivamente por uma GenAI, independentemente do seu modelo e grau de assertividade. A supervisão humana é fundamental e indispensável, sob pena de se configurar uma trapaça em sala de aula ou colocar em risco a saúde de um paciente.
- Impacto social: A GenAI deverá servir a sociedade. Promover o progresso, alargar o acesso ao conhecimento e prover soluções para as mais variadas consultas, das mais simples as mais complexas. Qualquer utilização diversa dessa premissa é questionável e depõe contra a sua existência.
i. Prompt correto
Usar o Prompt (“perguntas”) de maneira correta é essencial. Parafraseando Erik Nybo, advogado pioneiro em lawtechs, um prompt mal elaborado ou superficial vai gerar uma resposta inadequada ou com desempenho pior do que poderia ser, logo, (i) decepcionando o usuário; (ii) sem qualquer utilidade prática; e (iii) resultando em uma perda de tempo.
Introduzir prompts corretos diferenciará quem sabe trabalhar com a inteligência artificial e quem não sabe. Recentemente, inclusive, um renomado escritório de advocacia britânico recrutava profissionais sob o título de GPT Legal Prompt Engineer. Aqui, então, algumas dicas:
– Conciso: adote o mínimo de palavras possível para perguntar.
– Seja específico e forneça o contexto: use detalhes, exemplos e datas específicas para tornar seu prompt mais fácil de entender e responder.
– Gramática e ortografia adequadas: uma linguagem correta facilita o entendimento do seu prompt.
– Evite fazer várias perguntas em um único prompt: faça apenas uma pergunta para obter uma resposta clara e concisa.
ii. Supervisão e checagem
– Double Check: Os conteúdos gerados por aplicativos de conversação baseados em inteligência artificial generativa, como no caso do Chat-GPT, são estruturados em um complexo sistema de recompensas. Esse modelo, para a ciência da computação, pode ser superotimizado e, assim, prejudicar o seu desempenho. Logo, independentemente do resultado obtido, é essencial a realização de verificação das informações, em uma espécie de revisão, um double check. Em outras palavras: a GenAI não é infalível, podendo emitir, por exemplo, um fato histórico equivocado.
-Checagem: Se o destinatário de determinado conteúdo, como professores, suscitar dúvidas a respeito da sua origem, ou seja, se criado por alunos ou unicamente por GenAI, é possível verificar a sua veracidade através de softwares e mecanismos de checagem.
– Atualização: Como todo e qualquer sistema computacional, existem limitações temporais, ou seja, os aplicativos de GenAI podem não mencionar fatos históricos mais recentes. Logo, não se pode criar expectativas a esse respeito.
– Viés Algorítmico: Modelos como o Chat-GPT recebem treinamentos em diversas etapas, como exposto acima. Com base em determinados prompts, manipuláveis, poderá existir uma distorção ou inclinação irracional sobre determinado tema, inclusive sensíveis, como discursos de ódio dirigidos a uma etnia, preconceitos a uma classe social ou minorias e potenciais ofensas a indivíduos, principalmente àquelas publicamente expostas, como políticos e celebridades. Logo, é preciso fazer um uso responsável, evitando especulações e prompts de caráter que extrapole a intimidade, privacidade e ao direito ao esquecimento.
iii. Antiplágio
– Fontes: A carência de indicação das fontes primárias na produção dos textos, imagens e conteúdos em geral ou o uso de paráfrases são, de fato, o Calcanhar de Aquiles dessas ferramentas. No entanto, e como dito, aplicativos como o Chat-GPT funcionam como um veículo para os seus usuários atingirem determinadas finalidades. Jamais devem ser encarados como um fim em si mesmo. Logo, os conteúdos gerados, sem distinção, deverão passar por filtros de veracidade, rigor bibliográfico, uso do recurso de “aspas”, quando se fizer referência a outros textos pré-existentes e a transformação criativa (interferência do espírito humano) pelos seus usuários. Em outras palavras: não se recomenda aceitar como integralmente fiel os conteúdos gerados por aplicados de GenAI, pois como cita o filósofo Noam Chomsky, o Chat-GPT é uma forma de plágio hi-tech.
– Novidade e Originalidade: Ainda no tocante à transformação criativa, é altamente recomendável a interferência criativa do espírito humano nos conteúdos produzidos por GenAI. Como sabido, a novidade e originalidade são requisitivos essenciais para o reconhecimento de direito autoral. Se um texto, imagem, sons ou conteúdo em geral criado por GenAI não sofrer essa intervenção, mesmo que com um contributo mínimo do usuário, é alto o risco para a configuração de plágio, ou seja, na utilização indevida de obras de terceiros naqueles textos, imagens, sons ou conteúdos em geral gerados pelo aplicativo sem a devida citação de autoria. Afinal, lembre-se: o Chat-GPT, por exemplo, poderá criar algo apenas novo. A originalidade, que guarda subjetivas interpretações, a depender da perspectiva do usuário, poderá ser questionada, na medida em que a sua tecnologia tende a ser circular, ou seja, manipulando somente as informações já existentes na big data.
iv. Accountability
– Transparência: Independentemente do ambiente (salas de aula, escritórios de advocacia, consultorias, agências de publicidade, mercado literário, entre outros) é sempre prudente o esclarecimento prévio, o disclaimer, de que determinado conteúdo foi coproduzido através de plataformas ou recursos baseados em GenAI. Essa conduta é uma demonstração do melhor modelo colaborativo que o GenAI proporciona, ou seja, a sua essência. Sem contar no respeito ao mantra corporativo de alinhamento de expectativas. Afinal, a transparência, prestação de informações e a boa-fé são pilares básicos para qualquer relação pessoal e profissional.
v. Melhoria contínua
– Ciclo virtuoso e vicioso: Qualquer modelo baseado em GenAI possui um ciclo virtuoso. Ou, infelizmente, vicioso, a depender da interferência humana. No caso do Chat-GPT, o modelo adota esforços para recusar pedidos inadequados, embora ocasionalmente responda os prompts maliciosos e se comportando de forma tendenciosa. É dever, portanto, do usuário proceder às denúncias e alertas de erros, conteúdos nocivos e perigosos através dos links de moderação e filtros disponíveis e, assim, promover uma melhoria contínua.
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Não, a inteligencia artificial generativa não substituirá o profissional nas suas mais diversas atividades, como no exemplo (mas não limitado) das descritas anteriormente. Contudo, este profissional certamente deverá saber explorá-las e utilizá-las em favor das suas atividades, justamente para não ser substituído por àqueles que já dominam as melhores técnicas e recursos. E, cada vez mais, será exigido um profissional com um comportamento analítico, delegando a GenAI o papel de realizar tarefas passíveis de automação.
Episódios da nossa história, como o advento da pianola, do video-cassete e até mesmo do internet banking provaram que resistir ao progresso tecnológico é nadar contra a corrente. Lembre-se: a GenAI não é capaz de refletir, sentir emoções, ter empatia e formar um raciocínio original. Tampouco ter compreensão social, flexibilidade cognitiva, improvisos e criatividade para situações inusitadas e atípicas, bem como habilidades manuais e tomadas de decisões de caráter ético e moral. Tais comportamentos são inatos ao espírito humano, cabendo sempre e exclusivamente a você, leitor.
Este guia, portanto, aponta caminhos de como explorarmos os assistentes virtuais baseados em inteligência artificial, como no exemplo do mais famoso entre eles até o momento, o Chat-GPT, da empresa norte-americana Open AI, de forma positiva e propositiva. Ou seja, quais são as áreas e as atividades que podemos explorar em uma perspectiva de progresso, especialmente o mercado jurídico, assim como adotar determinados critérios de boas práticas, de modo a se fazer um uso justo, ético e de impacto social dessas ferramentas. Afinal, como afirmou o jurista britânico Richard Susskind, “O Chat-GPT é o sistema mais notável que já vi em mais de 40 anos trabalhando com IA”.
[1] Ainda Kaufman, a Machine Learning é uma subárea da IA. A técnica não ensina as máquinas a, por exemplo, jogar um jogo, mas ensina como aprender a jogar um jogo. O processo é distinto da tradicional “programação”. Essa priori “sutil” diferença é um dos fundamentos do avanço recente da Inteligência Artificial. Todos os elementos da movimentação online – bases de dados, tracking, cookies, pesquisa, armazenamento, links etc. – atuam como “professores” da IA. O termo hoje mais amigável é Deep Learning.