20.08.2024

Áreas de Prática: Público & Ambiente

Setores: Urbanismo & Ordenamento do Território

A figura da cedência para habitação pública prevista no Simplex Urbanístico – Uma figura sem regulamentação

O Governo apresentou, no dia 10 de maio deste ano, 30 medidas para enfrentar a crise de Habitação, sob o título “Construir Portugal: uma Nova Estratégia para a Habitação”. Dessas 30 medidas, uma reza o seguinte; “18. Revisão do Simplex Urbanístico: regulamentação, aprofundamento e aperfeiçoamento da legislação de desburocratização e simplificação administrativa urbanística (90 dias).”

Nestes últimos dias saíram na comunicação social os pontos em que se pensa que esta revisão do Simplex Urbanístico se irá focar.

Ora, um tema de grande importância e que não foi mencionado é a obrigação de cedências para habitação pública, prevista nos artigos 43º e 44º do RJUE. Figura que iremos abordar aqui.

Os artigos 43º e 44º do RJUE foram essencialmente alterados para incluir, como área de cedência, a habitação pública, a custos controlados ou para arrendamento acessível. Acresce que foram incluídos dois novos números no artigo 44º.

O RJUE prevê duas modalidades de habitação pública: para arrendar com uma renda acessível e para vender (depreendemos nós) a custos controlados. A novidade consiste, agora, na inclusão da cedência de áreas para habitação pública, no âmbito das cedências previstas para os projetos de loteamento, assim como projetos de impacte relevante.

Esta novidade legislativa surge como uma das medidas da política nacional da habitação seguidas nos últimos anos, dotando de novos instrumentos e competências a diferentes entidades públicas, com o fito de se tentarem resolver alguns dos problemas que existem com a falta de habitação em Portugal.

Assim, no nosso entender, o legislador pretendeu que este esforço coletivo de desenvolvimento de habitação a custos controlados, também fosse incluído nos projetos de loteamento, através de um novo encargo a incidir sobre os promotores. A saber, da mesma maneira que têm de estar previstas áreas de cedência para equipamentos, para espaços verdes e de utilização coletiva e infraestruturas viárias, desde 4 de março de 2024, também têm de ser previstas áreas de cedência para habitação pública.

Na verdade, no nosso entender, esta nova obrigação para os promotores carece de regulamentação, sendo que, na atualidade, nem promotores nem municípios sabem como operacionalizar esta cedência para habitação pública, subsistindo diversas dúvidas que não foram ainda esclarecidas:

 

  • Devem os promotores ceder área, lotes ou fração/ões já construída(s)?

Para que se possa operar uma cedência para habitação pública, a construção desta última dentro do loteamento tem de fazer sentido do ponto de vista urbanístico, arquitetónico e de vida social, além de terem de estar previstas todas as infraestruturas de forma que se possa concretizar um espaço para habitar.

Ora, como é que esta cedência se materializa? Até agora o legislador a isso não deu resposta. Alteraram-se as portarias que previam os parâmetros para as cedências, mas não se densificaram ou definiram com mais detalhe este instrumento de cedências. De modo que se questiona como se operacionaliza essa cedência em concreto. Têm de ser cedidos fogos? Se sim, como se quantificam? Serão então áreas dentro dos edifícios construídos? Ou simplesmente solo? E se for solo, terá de ser na área do loteamento ou poderá ser em área fora do loteamento? Ao dia de hoje não se sabe.

 

  • O legislador não especificou se esta obrigação seria para operações de loteamento para habitação ou com uma percentagem de habitação.

Na verdade, o legislador não diferenciou as operações de loteamento, isto é, não estabeleceu que estas cedência para habitação pública só eram aplicáveis às operações de loteamento que fossem para habitação (ou pelo menos com uma percentagem destinada a habitação), o que traz como consequência que podem existir operações de loteamento (industriais ou turísticas, por exemplo) em que seja completamente descabido que se prevejam áreas de cedência para habitação pública, ou mesmo que haja incompatibilidade com a classe de espaço definida no PDM.

Parece-nos que, nestes casos, poderemos socorrer-nos da Lei nº 31/2014, de 30 de maio, (Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo) que também foi alterada pelo Decreto-Lei nº 10/2024.  Nomeadamente, e para o que aqui nos interessa, foi aditado ao artigo 22º o seguinte: quando ocorre caducidade do regime de uso do solo, sempre e quando a propriedade do solo seja exclusivamente pública (o que será o caso na cedência gratuita ao município das parcelas para habitação pública) e estiver destinada a habitação não se terá de redefinir o uso do solo. Mais, presume-se que existe compatibilidade do uso habitacional sendo aplicáveis, com as devidas adaptações, as normas do plano relativas às parcelas confinantes e com as quais a parcela em causa tenha condições para constituir uma unidade harmoniosa.

Mas, e esta é a parte que nos interessa mais, o legislador estabeleceu que as câmaras municipais podem opor-se a esta presunção por razões de interesse público devidamente fundamentadas – cfr. nºs 6, 7 e 8 do artigo 22º.

Assim, parece-nos, que o legislador quis salvaguardar as situações em que, em princípio, o uso habitacional é incompatível com a classe de espaço definida no PDM. De modo que, no nosso entender, em operações de loteamento em que a construção de habitação, seja pública ou privada, não tenha qualquer cabimento, a cedência para habitação pública poderá não ser feita, com fundamento no artigo 22º, nº 8, da Lei de Bases, assim, como nos princípios gerais do direito administrativo. Faltará saber como “compensar” esta não cedência.

 

  • O legislador parece excluir a possibilidade de se fazer cedência de habitação pública mediante a compensação em numerário ou espécie ao contrário do que prevê expressamente para as restantes cedências no artigo 44º, nº 4, do RJUE.

Ora, esta não admissão é uma novidade pois é exatamente ao contrário do que sucede com outras cedências, o que, na nossa opinião, admitindo-se, no entanto, que possa ter sido lapso do legislador, constitui uma vontade clara do mesmo em conferir uma importância superior ao objetivo de construção de habitação pública.

É certo que se poderia argumentar que o artigo 14º da Lei de Bases, prevê no seu nº 2, al. b), que os proprietários devem [c]eder áreas legalmente exigíveis para infraestruturas, equipamentos, habitação pública, a custos controlados ou para arrendamento acessível, espaços verdes e outros espaços de utilização coletiva, ou, na ausência ou insuficiência da cedência destas áreas, compensar o município – sublinhado nosso. Mas, no nosso entender, a Lei de Bases coloca esta possibilidade, hipótese que depois o legislador desenvolve no RJUE, esclarecendo as situações em que se pode admitir a compensação.

 

  • A Portaria nº 75/2024, de 29 de fevereiro, que altera a Portaria nº 216-B/2008, de 3 de março, prevê no seu Quadro I os parâmetros a ter em conta para as cedências.

As portarias que estabelecem os parâmetros foram revistas, assim, a Portaria nº 65/2019, de 19 de fevereiro, que reviu o regime de habitação a custos controlados (anteriormente regulamentada pela Portaria nº 500/97, de 21 de julho) foi alterada pela Portaria nº 69-B/2024, de 23 de fevereiro, atualizando os parâmetros. Parâmetros que por sua vez foram densificados pela Portaria nº 75/2024, de 29 de fevereiro.

Importa também ter em conta o artigo 43º, nº 2, do RJUE que prevê a possibilidade d[o]s parâmetros para o dimensionamento das áreas [de cedência] são as que estiverem definidos em plano municipal ou intermunicipal de ordenamento do território. Isto quer dizer que, como se tem feito, o Município pode, no seu PDM, definir os parâmetros para o dimensionamento das áreas a ceder para habitação pública, assim como aproveitar este instrumento de ordenamento territorial para densificar o conceito e prever como se pode operacionalizar, sempre e quando não esteja em contradição com as portarias em vigor (a saber, redução da área a ceder).

Ora, ao colocar na mesma coluna os parâmetros para equipamento e habitação pública, Equipamento de utilização coletiva / habitação pública, de custos controlados ou para arrendamento acessível surge a dúvida se a cedência para “equipamentos” e para “habitação pública” é só uma. Isto é, se o município ira ter uma única área cedida e escolherá entre fazer um equipamento, habitação pública ou os dois.

Não nos parece que se possa entender que há opção no tipo de cedência que se quer fazer, isto é, é nosso entendimento que o legislador previu, cumulativamente:

– área para espaços verdes e de utilização coletiva,

– área para infraestruturas viárias,

– área para equipamentos e, agora, cumulativamente,

– área para habitação pública.

É o que decorre da letra da lei, dado que o legislador não coloca qualquer alternativa ou opção entre o tipo de cedência. Assim, entendemos que não se poderá englobar a área a ceder para habitação social dentro da de equipamentos. Pelo que não interpretamos o Quadro I da Portaria nº 216-B/2008, de 3 de março, na nova redação dada pelo artigo 2º da Portaria nº 75/2024, de 29 de fevereiro, como podendo escolher-se livremente entre área para equipamento ou área para habitação pública. Outro entendimento levaria a que numa operação de loteamento ou se construiriam equipamentos de utilização coletiva ou se construiria habitação pública. Aliás, recorde-se que, atualmente, não se interpreta o RJUE no sentido de que haver opção de escolha, por exemplo, entre aproveitar as cedências para espaços verdes ou para infraestruturas viárias.

Em conclusão, é nosso entendimento que seria de aproveitar a revisão que está em curso ao Simplex Urbanístico, para se suspender a exigência desta cedência até que seja densificado o regime de modo que se colmatem as lacunas através de uma regulamentação densificada desta figura (cfr. a título de exemplo, os regimes de Inglaterra e/ou França), caso contrário corre-se o risco de a mesma ser inoperativa ou, o que não seria melhor, cada município a aplicar/interpretar ao seu modo, criando-se divergências territoriais a nível nacional na aplicação desta obrigação.

 

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