Tornou-se comum a narrativa de que a inteligência artificial acabará com determinados empregos — uma espécie de extermínio do mercado de trabalho. Este discurso é frequentemente impulsionado por interesses comerciais e estratégias de mercado que se alimentam desse alarme.
Contudo, como quase tudo na vida, a realidade raramente é tão extrema — nem totalmente sombria, nem inteiramente iluminada.
É inevitável que surjam mudanças. E com elas, uma reconfiguração, sobretudo no mercado jurídico. Actividades essencialmente operacionais, repetitivas e com baixa exigência cognitiva tenderão a desaparecer ou a perder grande parte da sua relevância. Veja-se, por exemplo, a elaboração de relatórios periódicos de auditoria meramente descritivos, a pesquisa de precedentes judiciais em diversas jurisdições através de motores de busca especializados ou, até, a criação de cláusulas sobre temas específicos — como a proibição de concorrência desleal entre duas partes contratantes — geradas por LLMs como o ChatGPT, Claude, Gemini ou Grok.
Mas será mesmo necessário temer as máquinas? Vejamos dois exemplos.
O primeiro é o caso de um juiz de uma cidade do nordeste brasileiro, noticiado pelo informativo Migalhas. O magistrado proferia, em média, oitenta decisões e sentenças por mês. De repente, passou a emitir mais de novecentas. Uma auditoria identificou falhas graves nas sentenças e indícios de uso irregular de inteligência artificial.
O entusiasmo do juiz em acelerar a prestação jurisdicional chamou a atenção pelo desequilíbrio gerado — afinal, a tecnologia, quando bem utilizada, é aliada da justiça. Mas se mal aplicada ou usada sem ponderação, transforma-se em injustiça.
Não se trata, portanto, de volume, padronização, atalhos ou metas. Trata-se do que a tecnologia pode, de facto, substituir e dos domínios onde nunca deverá entrar.
O segundo exemplo é relatado por Cezar Taurion, ex-executivo da IBM e defensor de uma inteligência artificial explicável. Segundo Taurion, abundam entrevistas com CEOs de empresas tecnológicas a anunciar economias de tempo impressionantes graças à geração automática de código. Muitos afirmam mesmo que a forma de desenvolver software nunca mais será a mesma.
Mas qual é, na prática, o verdadeiro impacto dessas ferramentas no dia-a-dia de um programador? Não há dúvida de que os LLMs referidos são bastante úteis em determinados contextos — sobretudo na geração de código simples, protótipos rápidos, testes de ideias ou esboços de integrações entre sistemas, incluindo legaltechs.
No entanto, à medida que o projecto se torna mais complexo, os limites dessas ferramentas tornam-se evidentes. Taurion refere que, à medida que o código se complica, os LLMs começam a “esquecer” ajustes previamente pedidos, exigindo retrabalho constante. Muitas vezes, acrescentam funcionalidades desnecessárias, mesmo quando instruídos a não o fazer. Além disso, tendem a perder o contexto em implementações complexas. O tempo despendido a corrigir estes erros pode anular completamente a alegada poupança de tempo.
Não é muito diferente do que acontece numa pesquisa jurídica. Uma simples consulta sobre prescrição ou caducidade, por exemplo, pode resultar numa resposta objectiva de um LLM — uma síntese do conceito, sem grande profundidade. Para uma análise superficial, de consulta rápida ou para esclarecer uma dúvida pontual, tem utilidade. Mas para um parecer mais elaborado, com referências doutrinárias e jurisprudenciais, será indispensável recorrer à literatura jurídica e ao acervo bibliográfico, aliados ao crivo do intelecto humano.
O mesmo se aplica à elaboração de uma minuta de contrato de arrendamento comercial. Para uma versão inicial e genérica, pode ser útil. Mas se se exige algo mais robusto, sólido, com cláusulas e condições específicas, a intervenção do jurista é essencial. E, tal como no exemplo dado por Taurion, não se exclui a necessidade de revisão, ajustes e até a dispensa de partes do texto gerado por IA. Sem revisão humana constante, projectos podem ser comprometidos, com significativa perda de tempo.
Naturalmente, não se nega que os LLMs são ferramentas valiosas para acelerar tarefas repetitivas, gerar protótipos e consultar rapidamente conceitos ou sintaxes. Mas não substituem o raciocínio crítico de um programador ou jurista. Quem arrisca utilizar um código ou contrato gerado por IA directamente em produção ou perante o cliente, sem revisão ou rigor técnico mínimo, provavelmente não trabalha em projectos mais exigentes — ou então não valoriza a qualidade do trabalho e a sua própria reputação técnica. Veja-se o exemplo do magistrado brasileiro…
No final do dia, é como os italianos veneram a sua cozinha. Pode-se recorrer, por questões de tempo e eficiência, a um pacote de esparguete de uma marca conceituada para preparar o clássico cacio e pepe. Mas é essencial a mão do chef — na selecção dos ingredientes nobres, na combinação dos sabores, nos temperos e no tempo de cozedura ideal, para não passar do ponto e desagradar o comensal. Tal e qual os LLMs: “dá-me o básico, que eu dar-te-ei a singularidade”. Prego!