Juntar a fome com a vontade de comer é um clássico provérbio popular, uma verdade comum, que exprime a perfeita combinação de dois fatores complementares. De um lado, temos um prato rico em dados, com um backlog judicial estimado em oitenta milhões de processos. A isto juntam-se contornos adicionais, como um número recorde mundial de advogados per capita, mais de mil instituições de ensino e um ambiente que estimula o litígio, sendo o acesso à justiça gratuito e consagrado na Constituição.
Acrescentam-se ainda alguns temperos e condimentos, resultando num verdadeiro banquete: todos esses dados encontram-se digitalizados, disponíveis e acessíveis, de certa forma estruturados e passíveis de parametrização. É possível, portanto, promover a jurimetria, identificando a prática reiterada dos tribunais, construindo uma jurisprudência autêntica e avaliando a probabilidade de sucesso de uma acção judicial. Pode-se ainda apurar o tempo médio de duração de um processo, realizar pesquisas, desenvolver teses e consultar centenas de modelos de contratos e petições.
Walter Isaacson, biógrafo de Steve Jobs e de tantos outros génios, ao descrever o fenómeno da inovação tecnológica no Silicon Valley, afirma que o segredo está em plantar uma semente em solo fértil. Pode parecer banal, mas reflete bem o que acontece nesses casos: é necessário que o ambiente seja propício, como o descrito acima, e que a semente esteja na predisposição dos empreendedores para quebrar paradigmas e explorar o novo.
E foi exatamente isso que um grupo de jovens da cidade de Salvador, na Bahia, Brasil, fez há pouco mais de quinze anos. Ávidos por inovar, viram uma oportunidade em semear esse terreno fértil. Ao fundarem a JusBrasil, o objetivo era democratizar o acesso à informação jurídica num país de dimensão continental e cujos dados estavam fragmentados, isolados em silos. Um precedente judicial do sul do país, por exemplo, não estava acessível numa plataforma única. Não era possível realizar uma pesquisa numa base unificada, nem estabelecer parâmetros concretos de tendências e precedentes judiciais.
Como em qualquer startup, ao identificar-se uma falha de mercado, era necessário escalar e procurar investimento. O crescimento exponencial não aconteceu da noite para o dia, como nos almanaques glamorosos das big techs. Cinco anos depois, a JusBrasil recebeu o seu primeiro investimento seed e, em 2016, angariou 1,8 milhões de dólares numa ronda Série A. Em 2020, recebeu um investimento Série B no valor de 7,7 milhões de dólares e, em 2021, levantou nova ronda Série C, no valor de 32,5 milhões de dólares. Mais recentemente, obteve um investimento de 86,1 milhões de dólares, liderado pela Warburg Pincus, um dos maiores fundos de private equity dos Estados Unidos. Desde a sua fundação, a JusBrasil foi apoiada por fundos como Monashees, SoftBank e Founders Fund, que, em conjunto, investiram cerca de 128 milhões de dólares.
Atualmente, a plataforma conta com mais de 1,2 mil milhões de documentos públicos do sistema judicial brasileiro, abrangendo mais de 1.400 fontes de dados jurídicos (número que provavelmente já triplicou desde este artigo). A legaltech, que começou com 10 colaboradores, conta agora com cerca de 600, e a sua plataforma recebe 30 milhões de utilizadores únicos por mês. Mais de 80% dos advogados brasileiros estão registados na sua base de dados, ultrapassando o meio milhão. No mercado de fusões e aquisições, a empresa adquiriu a Bipbop, especializada na recolha de dados de sites, portais e sistemas públicos e privados através de crawlers e machine learning. Além disso, integrou outras duas legaltechs — Jurídico Certo e Teewa, em 2018 e 2019, respetivamente —, bem como a Digesto em 2021.
Os números impressionam, evidentemente. Refletem o grau de maturidade e consolidação da empresa, líder no setor, inclusive a nível mundial, e colocam-na numa posição de destaque no segmento das legaltechs, que ainda procura o seu espaço de reconhecimento (e saída) no mercado de private equity. Contudo, é importante salientar dois outros aspetos que podem explicar o sucesso estrondoso da JusBrasil: o seu apetite por promover a célebre destruição criativa schumpeteriana e o seu impacto social.
É sabido que a destruição criativa é o processo pelo qual inovações substituem o antigo, eliminando empresas e tecnologias obsoletas. A JusBrasil, nesse sentido, está sempre a reinventar-se, ao lançar novas soluções que substituem anteriores. É o caso recente da JusIA, plataforma de inteligência artificial generativa que interage com o utilizador, oferecendo contratos, petições e respostas a dúvidas e perguntas, desde as mais simples às mais complexas. Outras soluções, como o modelo B2B de parcerias institucionais para o desenvolvimento de pesquisas, têm sido uma verdadeira aposta. Aliás, pelo segundo ano consecutivo, a região de Oeiras Valley, no âmbito do Fórum Brasil-Lisboa, acolheu o lançamento de um valioso catálogo com todos os precedentes judiciais brasileiros relacionados com a lei geral de proteção de dados.
No que toca ao impacto social, nunca é demais lembrar que a maioria dos mais de um milhão de advogados brasileiros são profissionais liberais que não dispõem de grandes recursos para consolidar uma estrutura organizacional robusta, com capacidade de gestão e, sobretudo, de escala. Com a automatização proporcionada pela JusBrasil, a preços acessíveis, uma grande parte destes profissionais pode desempenhar a sua atividade com maior eficácia e, acima de tudo, com dignidade. E, convenhamos, suprindo com muito mais êxito o papel que caberia à sua ordem profissional.
Que a fama e o sucesso dos fundadores da JusBrasil não os deixem saciados. Pois, como disse Steve Jobs no seu célebre discurso aos finalistas de Stanford: “stay hungry, stay foolish”.