18.03.2025
Setores: Espaço e Satélites
Da Dependência à Autonomia: O Caminho da Europa para a Soberania Espacial (Parte 2)
Este artigo é o segundo de uma série de dois dedicada ao setor do Espaço e Satélites, em antecipação do Sharing Ideas, que se realizará no dia 20 de março, na Abreu Advogados.
Da Cooperação à Competição: O IRIS2 como Pilar para a Independência Europeia
Face à atual instabilidade e às crescentes ameaças geopolíticas e de cibersegurança, a conectividade espacial tem-se tornado indispensável – é esta a opção mais viável em caso de ausência ou perturbações das redes de comunicação terrestres (por exemplo, devido a desastres naturais, ciberataques ou atos de terrorismo). Com efeito, a transição para uma economia cada vez mais digital torna o setor das telecomunicações mais estratégico do que nunca.
É com isto em mente que a UE, através do Programa de Conectividade Segura da União para 2023-2027, visa estabelecer um sistema espacial soberano europeu de conectividade segura e de transmissão rápida de dados, e é como parte deste Programa que surge o IRIS2 (Infrastructure for Resilience, Interconnectivity and Security by Satellite) – uma constelação de satélites multiorbital da UE e que tem como principal objetivo a criação de uma infraestrutura de comunicação segura para os organismos e agências governamentais europeias, de modo a reforçar a soberania e autonomia estratégica da Europa face a terceiros.
O projeto consiste numa parceria público-privada, entre a Comissão Europeia e o setor privado, que envolverá cerca de 300 satélites que, segundo se estima, começarão a ser lançados em 2029, prevendo-se que o sistema esteja operacional em 2030. Com um orçamento de cerca de 11 mil milhões de euros, a constelação IRIS2 cobrirá não apenas a Europa, mas todo o mundo, incluindo zonas mortas em termos de conectividade, desenvolvendo comunicações rápidas e seguras em regiões geográficas de interesse estratégico, como o Ártico e África.
Um dos aspetos mais relevantes do projeto prende-se com o facto de esta se tratar duma constelação multiorbital, constituída por satélites Low Earth Orbit (LEO), Geostationary Orbit (GEO) e Medium Earth Orbit (MEO), o que permitirá um grau de precisão maior do que qualquer outra constelação existente – que, na maior parte dos casos, se tratam de constelações de órbita única.
Em abril de 2024, em resultado do concurso lançado pela Comissão Europeia, em 2023, foram selecionadas as regiões de Toulouse (França), Fucino (Itália) e Bettembourg (Luxemburgo), para hospedagem dos centros terrestres de controlo da constelação IRIS2. A região de Fucino, em particular, já abriga um dos centros de controlo terrestres do Galileo.
A Nova “CEE” (Constelações Espaciais Europeias): Complementaridade do IRIS2 face ao Galileo e ao Copernicus
A constelação IRIS2 virá complementar outras duas importantes componentes do programa espacial da UE: o Galileo (sistema europeu de navegação por satélite) e o Copernicus (sistema de captação de dados de observação da Terra).
A principal razão que esteve por trás da criação do Galileo foi que a Europa não estivesse dependente de sistemas de navegação por satélite controlados por terceiros, nomeadamente dos sistemas americano (GPS), russo (GLONASS) e chinês (BeiDou). Todos estes sistemas – ao contrário do Galileo, que foi pensado desde o início para o uso civil –, têm o foco orientado para o âmbito militar.
Os EUA foram grandes opositores ao Galileo, tentando dissuadir a Europa do seu desenvolvimento, alegando que poderia interferir com as operações militares do Pentágono e da NATO, e sugerindo que a Europa simplesmente usasse o sistema GPS. O principal receio dos EUA era que potenciais rivais pudessem utilizar os sinais encriptados do Galileo. Chegou mesmo a ser celebrado um acordo, em 2004, entre a UE e os EUA, para garantir que as frequências do Galileo não interferissem com o GPS.
Aquando do surgimento do Galileo, um dos principais fatores de tensão com os EUA prendeu-se com o facto de o sistema europeu permitir o acesso a posicionamento de alta precisão a qualquer utilizador, ao passo que o sistema americano (GPS) era mais restrito, apresentando, inclusive, até maio de 2000, a opção de tornar as informações de posicionamento fornecidas significativamente imprecisas, por meio de decisão de disponibilidade seletiva (“Selective Availability”) tomada pelo exército americano. Como agravante, acrescia o facto de, na altura, a China se apresentar como um dos principais investidores do Galileo (ainda que, posteriormente, tenha optado por se retirar e desenvolver o seu próprio sistema, devido a preocupações relativas à segurança nacional e ao modo de financiamento do projeto europeu).
O exposto ilustra bem a importância estratégica do espaço e a necessidade de independência face a terceiros.
IRIS2 e Portugal: Oportunidades Estratégicas no Setor Espacial
A Comissão Europeia identifica como objetivo primordial do IRIS2 “proporcionar aos Estados-Membros acesso garantido a serviços de conectividade altamente seguros, soberanos e globais que correspondam às suas necessidades operacionais”, bem como banda larga de alta velocidade a empresas privadas e a cidadãos europeus, baseando-se em tecnologias avançadas de encriptação. Dada a natureza estratégica do espaço e a sua essencialidade para a liberdade de ação e autonomia decisória das autoridades governamentais, esta constelação irá contribuir para o reforço da soberania e independência estratégica da UE.
Os benefícios associados ao desenvolvimento do IRIS2 não se limitam ao reforço da soberania europeia, mas potenciam também os domínios da segurança e defesa da UE, nomeadamente no âmbito militar (o espaço assume-se como fator essencial para missões e operações militares), gestão de crises (ajuda humanitária), vigilância (de fronteiras), apoio à ação externa e proteção de infraestruturas críticas. Um projeto desta dimensão contribuirá também, naturalmente, para a criação de empregos e para o aumento da competitividade da indústria espacial europeia.
O desenvolvimento do projeto contará com a participação de empresas de todas as dimensões, mesmo aquelas que não sejam especializadas no setor: permitirá não apenas a intervenção de grandes empresas do setor espacial, mas promove também a “participação de pequenas e médias empresas (PME)”, incluindo aquelas que, ainda que não se dediquem diretamente à atividade ou ao desenvolvimento de tecnologias espaciais, possam, dentro da sua área de expertise, contribuir com o seu conhecimento.
Tal como referido no Regulamento (UE) 2023/588, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março de 2023, que estabelece o já mencionado Programa de Conectividade Segura da UE para 2023-2027, “É vital para a segurança da União e dos seus Estados-Membros e para garantir a segurança e a integridade dos serviços governamentais que os recursos espaciais do Programa sejam lançados a partir do território da União”, sendo que apenas “em circunstâncias excecionais e devidamente justificadas, tais lançamentos deverão poder ser efetuados a partir do território de um país terceiro”.
Dentro da realidade europeia, Portugal apresenta-se como um país com um elevado potencial para o desenvolvimento do setor, não apenas pela sua posição geográfica privilegiada, dispondo de um território particularmente propício à construção de infraestruturas para o lançamento de satélites, mas também pelo facto de se encontrar inserido num contexto jurídico, institucional e tecnológico bastante favorável.
Do ponto de vista geoestratégico, os Açores beneficiam de uma posição singular, com uma localização-chave situada no centro do Atlântico, que oferece condições únicas para a criação de projetos espaciais. Com efeito, o teleporto de Santa Maria, desenvolvido em colaboração com a ESA, conta com uma área de cerca de 5,5 hectares e dispõe de um conjunto alargado de infraestruturas. Stefano Bianchi, Diretor de Voo da ESA, afirma que “o hub de retorno e acesso ao espaço de Santa Maria desempenhará um papel fundamental” para o futuro da Europa no espaço. O próprio território nacional continental dispõe igualmente de áreas adequadas à construção de infraestruturas espaciais, sobretudo no interior do país, onde extensas regiões com pouca ou nenhuma presença populacional e reduzida densidade vegetal, favorecem a sua implementação.
Relativamente ao enquadramento jurídico, Portugal revela-se, também aqui, como um “habitat” particularmente favorável ao desenvolvimento da indústria espacial, encontrando-se, no plano internacional, vinculado a diversos tratados, e, a nível interno, cumpre fazer referência ao Decreto-Lei n.º 16/2019, de 22 de janeiro, que estabelece o regime de acesso e exercício de atividades espaciais, regulando a atribuição de licenças para operadores espaciais.
Num mercado cujo valor global ultrapassa os 450 mil milhões de euros, Portugal apresenta oportunidades únicas de crescimento e inovação – só em 2023, o investimento público no país no setor alcançou um valor de, aproximadamente, 135 milhões de euros. Este panorama coloca Portugal, através da união entre o seu potencial geoestratégico e a existência de um ambiente propenso à colaboração internacional, numa posição privilegiada para atrair investimentos estratégicos e afirmar-se como centro de excelência na indústria espacial global. Poderá o IRIS2 vir a ser o catalisador que servirá para colocar Portugal no epicentro do setor espacial europeu?
Referências:
- Sapo, Nova constelação europeia de satélites IRIS começa a avançar (24/03/2023)
- Alice Tidey, Euronews, UE assina contratos para constelações de satélites numa “mudança de paradigma” para a defesa (16/12/2024)
- Jean-Pierre Diris, Techno-Science.net, IRIS²: A constelação europeia de satélites é lançada (25/01/2025)
- Conselho Europeu e Conselho da União Europeia: Política Espacial da UE (europa.eu)
- EUSPA (European Union Agency for the Space Programme): IRIS2 (europa.eu)
- European Commission: IRIS²: the new EU Secure Satellite Constellation (europa.eu)
- European Commission: Galileo | Satellite Navigation (europa.eu)
- European Commission: Copernicus | Earth Observation (europa.eu)