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Legaltechs: é proibido proibir

By Helder Galvão on

Uma legaltech brasileira, a Resolve Juizado, identificou uma falha no mercado e, como qualquer empresa inovadora, aproveitou uma oportunidade. O seu modelo de negócio é simples, mas altamente escalável: comercializar petições automatizadas por até cinco euros, permitindo que os consumidores requeiram direitos e indemnizações de pequeno valor. Ou seja, para aquelas situações corriqueiras do dia a dia.

A ideia não é nova, tampouco revolucionária. No entanto, incomodou a Ordem dos Advogados do Rio de Janeiro, que promoveu uma ação judicial para retirar a plataforma do ar. Segundo esta entidade, a legaltech banalizaria a profissão, afastando a essencialidade da advocacia e comprometendo a qualidade do acesso à Justiça, uma vez que o rigor técnico das petições seria de origem duvidosa.

A ação obteve êxito em caráter liminar, com a suspensão da plataforma. Contudo, numa instância superior, a decisão foi revertida. Destaca-se a manifestação do Ministro Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça. Para o magistrado, a incorporação das legaltechs no quotidiano, especialmente em situações de baixa complexidade, representa um avanço na melhoria da segurança jurídica do país. E mais: afirmou que estas tecnologias não procuram substituir os operadores do Direito, mas sim oferecer recursos valiosos aos tribunais, aos profissionais jurídicos e ao exercício da cidadania.

O impacto da decisão de um Ministro da mais alta instância jurisdicional do país, a favor de uma legaltech, foi imediato. De um lado, os entusiastas da adopção da tecnologia no Direito reconheceram que se trata de um caminho inexorável e, agora, apoiado (e legitimado) por uma autoridade. Do outro lado, a principal entidade de classe, receosa quanto à mercantilização da advocacia e à criação de precedentes que possam afetar os interesses corporativos dos seus membros.

O que está verdadeiramente em jogo é quem explorará uma autêntica mina de ouro. E os números são impressionantes: 1,4% do PIB brasileiro (o décimo entre as maiores economias do mundo) é consumido por litígios. Das mais de oitenta milhões de ações judiciais existentes no país, mais de metade dizem respeito a ações de consumo. Apenas no tribunal do Ministro Herman Benjamin, foram recebidas, no ano passado, mais de meio milhão de ações judiciais, tendo sido proferidas mais de seiscentas mil decisões.

Quanto aos valores, os montantes ultrapassam até mesmo o PIB de muitos países europeus. Em depósitos judiciais — ou seja, valores pagos pelos vencidos nas ações, mas que ainda aguardam levantamento pelos credores — estima-se que já ultrapassem os setenta mil milhões de euros. Já o tempo médio de tramitação de uma ação de consumo ronda os quatro anos, e a proporção entre o número de ações em curso por cem mil habitantes equipara-se à da China e da Índia, dois dos países mais populosos do planeta.

O embate entre a Resolve Juizado e a Ordem dos Advogados do Rio de Janeiro evidencia outro ponto crucial: num mercado com um milhão e trezentos mil advogados — número apenas superado pelos Estados Unidos — é dever da ordem profissional zelar pela manutenção do monopólio da profissão, pois o surgimento de mais plataformas poderia ocupar o espaço reservado aos advogados. Contudo, não existe qualquer dado concreto que justifique esse receio.

Em primeiro lugar, não se pode afirmar que um cidadão comum, ao adquirir uma petição por cinco euros, deixaria de contratar um advogado para o representar em tribunal. É do conhecimento geral que causas de menor complexidade ou de baixo valor podem ser resolvidas diretamente através de plataformas de resolução de litígios online, as denominadas ODR (Online Dispute Resolution). Os principais sites de comércio eletrónico do mundo, como o Ebay, já utilizam esse mecanismo. O mesmo se verifica nas relações de consumo no setor da aviação, sendo inúmeros os exemplos de plataformas semelhantes.

Em segundo lugar, é falsa a premissa de que a referida legaltech serviria apenas ao cidadão comum. É cada vez mais habitual que os operadores do Direito e profissionais liberais utilizem essas plataformas para escalar a sua atividade, em busca de eficiência e de economia de tempo. No final do dia, o destinatário da legaltech é também o próprio advogado. É o que o jurista britânico Richard Susskind designa por “mais por menos”, ou seja, mais eficiência em menos tempo e com menores custos. Portanto, um ciclo virtuoso, em que todos saem beneficiados — a famosa relação win-win.

Em terceiro lugar, vale a pena citar o voto do Ministro Herman Benjamin, ao afirmar que proibir a legaltech é como um “paradoxo antidemocrático”; afinal, ao restringir o uso de tecnologias que facilitam o acesso à Justiça, corre-se o risco de limitar a própria democracia. A democracia, na visão do Ministro, implica garantir que todos os cidadãos possam exercer os seus direitos e resolver os seus problemas — e não criar barreiras para que isso aconteça. Em suma, o caminho é regulamentar o uso das novas tecnologias de forma construtiva, em vez de simplesmente as proibir por receio da mudança.

O braço-de-ferro ainda está longe de terminar. A Ordem dos Advogados do Rio de Janeiro interpôs novo recurso contra a decisão que manteve o pleno funcionamento da legaltech. Há quem diga que esse recurso não utilizou as petições automatizadas, a preço de saldo, da Resolve Juizado.

Contudo, independentemente de quem tenha razão, restam apenas três certezas: não se pode impedir o curso da água, e o voto do Ministro apenas confirma esta velha máxima. Além disso, tudo o que é censurado tende a crescer. A Resolve Juizado certamente capitalizou o episódio e, no seu embalo, outras legaltechs surgirão para explorar este valioso nicho. E, por fim, como diria Caetano Veloso, num recado direto às ordens profissionais: é proibido proibir.

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