Numa recente palestra sobre direito e tecnologia em Harvard, o jurista britânico Richard Susskind citou o mercado jurídico brasileiro como uma referência mundial em práticas inovadoras. Também numa recente visita a um evento sobre o tema em São Paulo, o jurista norte-americano Joshua Walker reiterou as palavras de Susskind e foi além: o Brasil é, hoje, o principal ator do mercado jurídico.
Mas qual será o motivo para esse sexy appeal brasileiro? Destacamos três.
O primeiro motivo pode parecer óbvio mas não é. O Brasil, atualmente, dispõe de um acervo processual de mais de oitenta milhões de ações judiciais ativas, ou seja, em curso. Esse backlog coloca o país entre os maiores do planeta em números absolutos, concorrendo com a Índia, por exemplo. Porém, não existe, necessariamente, uma associação direta entre um número volumoso de processos judiciais e as práticas inovadoras que justifiquem tornar o país uma referência. O que se tem, na verdade, é uma consequência desse facto.
É um direito fundamental, previsto na Constituição Federal brasileira, o princípio do acesso a justiça. O ajuizamento de ações judiciais para matérias que envolvem relações de consumo, por exemplo, é gratuito até pedidos de indenizações limitados a algo em torno de dez mil euros. E, para pedidos de até cinco mil euros, nem sequer é preciso de advogado. Além disso, em caso de julgamento improcedente, não existe condenação pecuniária para quem perdeu. Em resumo: um prato cheio para o incentivo de proposituras de ações judiciais aos montes. Existem até advogados especializados nesse tipo de modelo de negócio, onde a escala é que se encontra o seu, digamos, pulo do gato.
Aliado a esse terreno fértil, temos um outro fator de nitroglicerina pura: a quantidade de advogados. Atualmente são mais de um milhão e duzentos mil profissionais inscritos no ordem de classe, o que correspondente a uma média de advogado versus cidadão na liderança mundial. Esse contingente provoca uma autêntica seleção natural, na medida em que parte dessa, digamos, pirâmide social de juristas se concentra na sua base, vilipendiando a cobrança de honorários, em um nivelamento por baixo. Não é imprudente afirmar que se instaurou um autêntico leilão às avessas, no sentido de quem oferece menos para prospectar clientes.
Também não é preciso maiores divagações para concluir que (i) o acesso facilitado à justiça; (ii) inexistência de desestímulos; e (iii) alta concorrência, logo, níveis baixos de cobranças de honorários, formam o triplé clássico de quanto mais processos judiciais, melhor, em um caminho, a longo prazo, de perpetuação desse sistema, que se retroalimenta, para o bem ou para o mal.
Já a segunda motivação é que existe, de fato, uma robusta e importante política pública do Poder Judiciário brasileiro para que todos os dados que giram em torno da tutela jurisdicional sejam públicos, abertos e, principalmente, estruturados. Segundo os juristas Daniel Becker e Erik Navarro Wolkart, com o maior datalake jurídico do mundo, os Tribunais brasileiros possuem uma riqueza inestimável de dados que, estruturados e devidamente analisados, promovem inúmeros benefícios para a sociedade, como, por exemplo, saber a chance de procedência de diversos tipos de demandas, entender quando vale a pena propor um acordo, qual o melhor valor de oferta, ou mesmo se vale à pena ajuizar uma determinada ação.
Para Becker e Navarro, há três aspetos importantes na ideia de open justice quando se fala sobre a legibilidade dos dados do Poder. O primeiro deles diz respeito ao acesso à informação jurídica, um desdobramento do ideal de acesso à justiça visto acima. O direito de acesso à informação jurídica exige que o sistema jurídico seja de fácil navegação. Já o segundo trata da legibilidade automática (machine readable) dos dados, ou seja, a possibilidade de leitura de dados estruturados ou não para fins de aplicação de técnicas de inteligência artificial e jurimetria (conforme já debatemos em outro artigo deste blog). E o terceiro, para a tão badalada adoção dos princípios do ESG, pois somente com os dados abertos teremos como garantir o pilar do accountability ao Poder Judiciário.
A consequência, portanto, dessa política, desagua para outros três fatores ricos e cruciais para a existência e proliferação de legaltechs no país, quais sejam, (i) big data robusta; (ii) “matéria-prima” para alimentar as plataformas de jurimetria; e (iii) abundantes soluções neste ambiente de hiperjudicialização, afinal o alto volume de ações judiciais invariavelmente resultam em morosidade e ausência de resolução efetiva para os conflitos que são colocados sob a jurisdição dos tribunais.
Não à toa, o mapa de legaltechs no país, conforme divulgado pela Associação Brasileira das Lawtechs e Legaltechs (AB2L), já ultrapassou mais de cento e cinquenta empresas associadas, sem contas as inúmeras outras que não estão inscritas, triplicando esse mapa. O menu é o mais variado possível, com distintas soluções, para todos os perfis e interesses.
Por fim, não se pode esquecer do terceiro motivo: a oferta de serviços jurídicos, em um país de dimensão continental, possui um alto grau de simetria. As principais firmas jurídicas do país, sejam elas de grande, médio porte ou as chamadas boutiques, possuem uma certa similitude na prestação dos serviços. Muito gente fazendo igual, em um alto grau de padronização, seja no estilo, linguagem e até mesmo na vestimenta. Em um universo de mais de vinte mil bancas somente na cidade de São Paulo, instaurou-se uma verdadeira corrida para oferecer propostas inovadoras, que saiam desse lugar-comum, ou que, de alguma forma, obedeçam ao mandado difundido por Richard Susskind, consistente na criação de arranjos alternativos de cobrança ou no more-for-less challenge. Esse movimento, cada vez mais crescente, tem criado um ambiente ainda mais competitivo, cuja criatividade é a mola propulsora e grande diferencial, principalmente para cativar as big techs como clientes.
Como visto, o mercado jurídico brasileiro vive uma tempestade perfeita e, merecidamente, é objeto da atenção do mundo. Sem dúvidas se tornou um benchmarking, cuja conjunção de fatores não dá sinais de retrocesso. Muito pelo contrário: se tornou um produto de exportação.
P.s. No momento da publicação deste artigo no blog, foi anunciada a lawtech brasileira “Inspira” como a vencedora do concurso promovido pelo Web Summit Lisboa 2023. O que só confirma as palavras acima.