03.08.2021

Áreas de Prática: Trabalho

Créditos Emergentes de Contrato de Trabalho: o que muda na responsabilidade solidária das sociedades?

No âmbito de um processo de fiscalização abstrata e sucessiva da constitucionalidade, desencadeado na sequência do Acórdão n.º 227/2015, da 1.ª Secção, e das Decisões Sumárias n.º 363/2015 e n.º 434/2019, da 1.ª Secção, o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da interpretação conjugada das normas contidas no artigo 334.º do Código do Trabalho e no artigo 481.º, n.º 2, proémio, do Código das Sociedades Comerciais, na parte em que impede a responsabilidade solidária da sociedade com sede fora de território nacional, em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo com uma sociedade portuguesa, pelos créditos emergentes da relação de trabalho subordinado estabelecida com esta, ou da sua rutura.

Como fundamento, o Tribunal Constitucional sintetiza a questão como um problema de comparação, nomeadamente visto que dois trabalhadores com contrato de trabalho submetido à lei portuguesa, e que tenham como empregadores sociedades com sede em Portugal, terão garantias patrimoniais distintas, consoante a sede da sociedade coligada se situe, ou não, em Portugal. Mais ainda, considera o Tribunal Constitucional que a questão da comparação se levante também entre grupos económicos, uma vez que sociedades estrangeiras que pretendam coligar-se com sociedades portuguesas o poderão fazer, nos mesmos termos que sociedades com a sua sede situada em Portugal, sem contudo o seu património responder pelos créditos salariais emergentes de contrato de trabalho celebrado em território nacional nos mesmos termos que estas últimas.

No ponto 16. do Acórdão em apreço são mencionadas três razões justificativas que o Tribunal Constitucional considerou como potenciais razões, no sentido de contraposição ao arbítrio, para a autolimitação espacial da norma do 334.º CT.

São elas: 1) a proteção do estatuto pessoal da sociedade com sede no estrangeiro, 2) razões atinentes à regulação das situações privadas internacionais, evitando a mobilização dos institutos da  adaptação e mobilização, e 3) a atração de investimento estrangeiro. Todas estas razões foram consideradas insuficientemente persuasivas para justificar as diferentes garantias conferidas aos créditos laborais titulados pelos trabalhadores das sociedades.

Concretizando, o Tribunal Constitucional considerou que:

  • A exigência de que ambas as sociedades tenham sede em Portugal apenas determina que esse regime, com que a lei portuguesa especialmente garante a satisfação dos créditos laborais, não possa ser aplicada fora deste limite, não afastando, como parece querer-se argumentar, a aplicação do direito português à relação intersocietária plurilocalizada. Isto porque uma norma de autolimitação espacial não afasta a aplicação do regime material ao caso concreto, como o faria uma regra de conflitos do foro, mas antes tão e somente afasta a sua própria aplicação, não procedendo, assim, no entendimento do Tribunal Constitucional, o argumento que remete para a proteção do estatuto pessoal da sociedade. Mais ainda, acrescenta que “no plano da segurança jurídica das garantias dos créditos salariais, qualquer expectativa que a sociedade estrangeira dominante pudesse ter em ver a sua responsabilidade integralmente regulada pela lei pessoal da sede respetiva não só não é uma expectativa em si mesmo tutelável, como seria sempre uma expectativa menos digna de tutela do que a expectativa do trabalhador empregado por uma sociedade portuguesa em coligação com aquela — coligação que pode até ter ocorrido após a constituição do vínculo laboral — em beneficiar — ou continuar a beneficiar em caso de deslocalização da sede da sociedade dominante — das garantias especiais de proteção do salário asseguradas pela lei do foro.”
  • Também não colhe este entendimento, uma vez que o Tribunal Constitucional considera que, dispondo o direito internacional privado das ferramentas para a solução o problema, não releva a maior ou menor dificuldade da sua aplicação, para mais facilitada pelos próprios instrumentos do direito da União Europeia.
  • Por fim, mesmo enquadrando a questão da captação de investimento estrangeiro como finalidade possível das políticas de aumento de bem-estar e económico, nos termos da alínea a) do artigo 81.º da Constituição da República Portuguesa, e como tal tornando a questão digna de proteção constitucional, a mesma “não dispõe de peso suficiente para justificar que a trabalhadores em igual posição e com igual dignidade social sejam atribuídas diferentes garantias salariais. Conclusão tanto mais evidente quanto certo é que, na concretização e conformação destas garantias, o legislador não se move num «terreno constitucionalmente neutro, mas antes num domínio informado pela «relevância constitucional da retribuição» e pela «preocupação da Constituição em proteger a autonomia dos menos autónomos na relação de trabalho»”, para mais tutelado no artigo 59.º n.º 3 da Constituição da República Portuguesa.

Assim sendo, e por considerar que a mesma origina tal espécie de desequilíbrio, considera o Tribunal Constitucional que a norma viola o princípio da igualdade, na sua vertente da proibição do arbítrio, consagrado no artigo 13.º da Constituição.

Com o afastamento da interpretação conjugada das normas contidas no artigo 334.º do Código do Trabalho e no artigo 481.º, n.º 2, proémio, do Código das Sociedades Comerciais, na parte em que impede a responsabilidade solidária da sociedade com sede fora de território nacional, passa o trabalhador a poder exigir de sociedade estrangeira, intra ou extraeuropeia, em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo com uma sociedade portuguesa, responsabilidade pelos créditos emergentes da relação de trabalho subordinado estabelecida com esta, ou da sua rutura, independentemente do disposto na lei do estatuto pessoal da sociedade com sede do estrangeiro.

O Acórdão mereceu cinco votos de vencido, cujas posições se sintetizam em torno de dois argumentos como bem sumariza o voto de vencido conjunto de Maria José Rangel de Mesquita, Maria de Fátima Mata-Mouros e José António Teles Pereira: “O caminho seguido nas decisões anteriores, do qual divergiram os dois votos apostos ao Acórdão n.º 227/2015, acabou por contaminar o percurso interpretativo do presente Acórdão, originando uma situação que é — como sempre foi — inócua, relativamente a Estados–Membros da União Europeia — onde não vale a autolimitação —, mas que terá consideráveis inconvenientes (afastando uma opção legítima e racionalmente justificada do legislador nacional) relativamente a ordens jurídicas exteriores à União Europeia.

Com efeito, nos termos alegados nos votos de vencido, situação sobre a qual o Tribunal Constitucional decidiu expressamente não se pronunciar no ponto 7., esta autolimitação já não tinha aplicação em sede da União Europeia, onde, por aplicação do artigo 8.º do Regulamento (CE) n.º 593/2008, (Roma I) que regula a determinação da lei aplicável à regulação dos contratos individuais de trabalho e, por essa via, a determinação, a montante, da lei aplicável à regulação do contrato individual de trabalho — isto é, qualquer que seja o Estado-Membro da sede da sociedade empregadora e das sociedades com esta coligadas — a determinação da lei aplicável à regulação dos contratos individuais de trabalho implica a determinação do concreto regime jurídico aplicável em matéria de responsabilidade por crédito emergente de contrato de trabalho, o que tem por efeito o afastamento das sociedades com sede num outro Estado Membro, à regra de autolimitação espacial (prevista no artigo 481.º, n.º 1, proémio, do CSC) da responsabilização solidária do artigo 334.º do CT.

Diferente situação é a aplicação deste regime nacional além fronteiras europeias, sem real alcance executivo; alega-se, sumariamente, quanto a este ponto que “É com este sentido que a autolimitação espacial estabelecida pelo legislador nacional — relativa ao espaço exterior à União Europeia — tem efetivo sentido, reconhecendo realisticamente os condicionalismos do “meio -ambiente” no qual, na falta dessa opção, teria a pretensão de se projetar, o que constitui razão suficiente para que o Tribunal a tivesse aceite — nesse concreto espaço, todavia diferente daquele relativamente ao qual o Acórdão n.º 277/2015 se pronunciou.”

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