Proposta de execução do Regulamento Europeu sobre o Mercado de Criptoativos (MiCA) em Portugal
No passado dia 16 de setembro, foi apresentada na Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 32/XVII/1.ª, que executa na ordem interna o Regulamento (UE) 2023/1114 relativo aos mercados de criptoativos (“Regulamento MiCA”) (a “Proposta”).
A Proposta visa concretizar a execução interna do Regulamento MiCA, aplicável na sua totalidade desde 31 de dezembro de 2024, adaptando a legislação nacional e definindo autoridades competentes, procedimentos de autorização, regime sancionatório e normas transitórias.
- A quem se aplica?
Em conformidade com o disposto no MiCA, a Proposta visa uniformizar as regras aplicáveis a:
- Oferentes e pessoas que solicitam a admissão à negociação de criptoativos;
- Emitentes de criptofichas referenciadas a ativos ou criptofichas de moeda eletrónica; e
- Prestadores de serviços de criptoativos.
A Proposta tem como principais objetivos:
- A proteção dos detentores de criptoativos;
- A manutenção da integridade do mercado, assim como a estabilidade financeira e bom funcionamento dos sistemas de pagamento associados; e
- Mitigar riscos relacionados com criptoativos que procuram estabilizar o seu preço em relação a um ativo específico ou a um cabaz de ativos, designadamente para a política monetária.
- Alteração ao Código dos Valores Mobiliários e ao regime do Livro de Reclamações
A Proposta prevê também a alteração do:
- O Código dos Valores Mobiliários, integrando os prestadores de serviços de criptoativos, os emitentes de criptofichas, outros prestadores de serviços de criptoativos e prestadores de serviços de financiamento colaborativo no perímetro de supervisão da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (“CMVM”);
- O Decreto-Lei n.º 156/2005, que regula a obrigatoriedade do Livro de Reclamações, abrangendo também os prestadores de serviços de criptoativos e emitentes de criptofichas.
- Autoridades competentes para a supervisão do mercado de criptoativos
Tal como esperado, a Proposta sugere uma repartição de competências de supervisão entre o Banco de Portugal (“BdP”) e a CMVM.
Nesse quadro, o BdP seria responsável pela supervisão das seguintes matérias:
- Autorização para oferecer ao público criptofichas referenciadas a ativos e para solicitar a sua admissão à negociação;
- Autorização de prestadores de serviços de criptoativos;
- Aquisição de prestadores de serviços de criptoativos;
- Prestadores significativos de serviços de criptoativos;
- Requisitos a preencher por todos os emitentes de criptofichas de moeda eletrónica e do regime aplicável às criptofichas de moeda eletrónica significativas;
- Requisitos prudenciais e mecanismos de governação; e
- Subcontratação de funções operacionais e liquidação ordenada dos prestadores de serviços de criptoativos.
Por outro lado, a CMVM seria a autoridade responsável pela:
- Supervisão de ofertas públicas de criptoativos que não sejam criptofichas referenciadas a ativos nem criptofichas de moeda eletrónica;
- Supervisão da admissão à negociação de criptoativos que não sejam criptofichas referenciadas a ativos nem criptofichas de moeda eletrónica, inclusive em plataformas que tenham Portugal como Estado-Membro de origem;
- Prevenção e proibição dos abusos de mercado ligados a criptoativos;
- Supervisão das obrigações relativas a serviços específicos de criptoativos (como custódia e administração em nome de clientes, operação de uma plataforma de negociação de criptoativos, troca de criptoativos por fundos ou por outros criptoativos, consultoria sobre criptoativos e gestão de carteiras de criptoativos, entre outros);
- Supervisão dos deveres de atuação dos prestadores de serviços de criptoativos;
- Supervisão da guarda dos criptoativos e dos fundos dos clientes;
- Supervisão do cumprimento dos procedimentos de tratamento das reclamações;
- Supervisão da aplicação e manutenção de políticas e procedimentos relativos à identificação, prevenção, gestão e divulgação de conflitos de interesses.
As entidades de supervisão devem ainda estabelecer mecanismos de cooperação e troca de informações com a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (“ASF”) relativamente aos pedidos de parecer relativos à qualificação jurídica de criptoativos.
- Pontos de contacto para cooperação transfronteiriça
Ao abrigo do artigo 4.º da Proposta, o BdP e a CMVM partilham também competências ao nível da supervisão transfronteiriça, de acordo com a seguinte divisão:
- O BdP será o ponto de contacto nas matérias relativas a emitentes de criptofichas referenciadas a ativos, emitentes de criptofichas de moeda eletrónica e prestadores de serviços de criptoativos, bem como com a Autoridade Bancária Europeia;
- A CMVM será o ponto de contacto para a cooperação administrativa transfronteiriça entre autoridades competentes nas matérias relativas a abuso de mercado e a ofertas de criptoativos que não sejam criptofichas referenciadas a ativos ou criptofichas de moeda eletrónica, bem como com a Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados.
- Regime de Autorização
- Prestadores de serviços de criptoativos
O regime de autorização e revogação dos prestadores de serviços de criptoativos, é baseado num sistema de competência partilhada entre o BdP e a CMVM, em conformidade com o disposto no Regulamento MiCA.
Não é expectável que as autoridades de supervisão portuguesas com competência nesta matéria, tais como o BdP e a CMVM, venham a divergir, de forma relevante, quanto aos termos definidos na legislação europeia para o procedimento para o pedido de autorização destas entidades, incluindo, além do Regulamento MiCa, o Regulamento Delegado (UE) 2025/304, o Regulamento Delegado (UE) 2025/305 e o Regulamento Delegado (UE) 2025/306.
Não obstante, para integração dessas regras no sistema jurídico português, a Proposta adapta o procedimento previsto no MiCA e espera-se a adoção de normas regulamentares por parte do BdP e da CMVM, em conformidade com o disposto no artigo 29.º da Proposta.
Nos termos da Proposta o processo de autorização é composto pelos seguintes passos:
- Apresentação do pedido de autorização junto do BdP;
- Comunicação do pedido de autorização pelo BdP, à CMVM;
- A CMVM emite parecer, no prazo de 10 a 15 dias consoante o caso, como definido no Regulamento MiCA, quando identifique motivos que obstam a uma decisão favorável;
- Se no mesmo prazo a CMVM não se pronunciar, considera-se que não tem objeções a uma decisão favorável.
O BdP, tem também o dever de comunicar à CMVM os atos de administração, revogação e alteração relativos aos prestadores de serviços de criptoativos.
- Emitentes, oferentes e outras pessoas relacionadas com a a organização e o funcionamento dos mercados de criptoativos
O procedimento de autorização relevante para estas atividades encontra-se desde já delimitado pelo disposto Regulamento Delegado (UE) 2025/1125, que complementa o Regulamento MiCA e que estabelece as normas técnicas de regulamentação que especificam as informações a fornecer no pedido de autorização para oferecer ao público criptofichas referenciadas a ativos ou para solicitar a sua admissão à negociação.
Neste processo, será também relevante o contributo da Autoridade Bancária Europeia e a influência que as suas normas, orientações e recomendações poderão vir a ter nas autoridades nacionais.
- Colaboradores dos prestadores de serviços de criptoativos
A Proposta impõe regras específicas para os colaboradores dos prestadores de serviços de criptoativos que prestem serviços de consultoria, tendo em vista assegurar que o aconselhamento é realizado por profissionais com qualificação e experiência adequadas, garantindo elevados padrões de proteção dos investidores.
Assim, os prestadores de serviços de criptoativos que prestem serviços de consultoria devem:
- Definir de forma clara as responsabilidades de cada colaborador;
- Garantir que os colaboradores possuem a qualificação e experiência profissional necessárias;
- Disponibilizar à CMVM, quando solicitado, documentação que comprove os conhecimentos e competências dos colaboradores;
- Realizar, pelo menos uma vez por ano, uma avaliação da adequação dos conhecimentos e competências dos colaboradores, identificando eventuais necessidades de formação ou de experiência e implementando, sempre que necessário, as medidas corretivas apropriadas;
- Incluir nos relatórios de controlo do cumprimento a análise da observância dos critérios de avaliação aplicáveis.
- Proteção dos detentores de criptoativos
A Proposta introduz diversos mecanismos de tutela dos investidores, incluindo:
- Direito à ação popular;
- Possibilidade de constituição de associações de defesa dos detentores de criptoativos;
- Procedimentos de tratamento de reclamações;
- Acesso obrigatório a entidades de resolução alternativa de litígios.
A disponibilização e adoção destes mecanismos pelas entidades abrangidas constitui uma novidade e deverá ser tida em conta no âmbito dos processos de autorização.
- Regime sancionatório
A Proposta estabelece um quadro de contraordenações aplicável ao incumprimento das obrigações previstas no Regulamento MiCA e na legislação nacional de execução.
Constituem contraordenação, entre outras, as seguintes condutas:
- Violação de deveres de comunicação e informação às autoridades competentes e ao público;
- Irregularidades em ofertas públicas ou na admissão à negociação de criptoativos;
- Emissão de criptofichas referenciadas a ativos ou de criptofichas de moeda eletrónica sem notificação ou autorização prévia;
- Prestação de serviços de criptoativos sem autorização ou em incumprimento dos deveres prudenciais e de conduta impostos pelo regime;
- Práticas consideradas abuso de mercado, como o uso ou divulgação de informação privilegiada, a omissão de informação relevante ou a manipulação de mercado.
- Coimas aplicáveis
De acordo com o estabelecido na Proposta, as infrações do disposto no novo regime poderão implicar coimas até ao montante de € 5.000.000 (cinco milhões de euros).
As coimas podem ainda ser agravadas em função do volume de negócios ou do benefício económico obtido, sem prejuízo também de um conjunto de sanções acessórias, em linha com o aplicável às entidades financeiras, incluindo a interdição do exercício de cargos, a publicação de decisões e a restituição de vantagens indevidas.
A Proposta prevê também a aplicação de medidas cautelares para proteção de investidores e do mercado, incluindo a suspensão preventiva de atividades ou funções, a apreensão e congelamento de valores e criptoativos, independentemente da sua localização e o encerramento preventivo de estabelecimentos onde se exerçam atividades ilícitas.
- Regime transitório
- Pedidos Pendentes
Os pedidos de registo inicial e alterações ao abrigo da Lei n.º 83/2017, que estabelece medidas de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo (“Lei BCFT”), extinguem-se por impossibilidade ou inutilidade superveniente pendentes no BdP a 30 de dezembro de 2024.
- Entidades autorizadas, com atividade iniciada e comunicada
Para as entidades que a 30 de dezembro de 2024, se encontrassem registadas junto do BdP ao abrigo da Lei BCFT e que tenham atividade iniciada e comunicada, a Proposta prevê a continuidade do exercício das atividades para as quais estão habilitadas até 30 de dezembro de 2025, sendo consideradas, durante esse período transitório, prestadores de serviços de criptoativos.
Até ao final desse período transitório, as entidades devem comunicar ao BdP qualquer alteração à firma, marca, sede, jurisdições de atividade, membros dos órgãos de administração e fiscalização, titulares de participações diretas ou indiretas e respetivos beneficiários efetivos.
Alterações de outra natureza, designadamente respeitantes ao objeto social, tipo de atividades ou estrutura acionista, determinam a caducidade do registo e a perda do benefício relativo ao período transitório.
- Entidades autorizadas, mas sem atividade iniciada e comunicada
As entidades que, a 30 de dezembro de 2024, não tinham atividade iniciada e comunicada, terão o seu registo caducado e ficam proibidas de exercer atividades com ativos virtuais até que obtenham autorização nos termos previstos na Proposta.
Assim, o período transitório estabelecido em Portugal, até 30 de dezembro de 2025, é mais curto do que o máximo previsto no Regulamento MiCA. Ainda que a duração do período transitório possa vir a ser ajustado no âmbito da discussão parlamentar da Proposta, o período efetivo para obtenção de autorização pelas entidades já autorizadas e operantes poderá revelar-se curto, especialmente considerando que a Proposta terá ainda de ser sujeita a discussão e aprovada antes de que se possa iniciar qualquer processo de autorização ao abrigo do novo regime.
- Próximos Passos
A Proposta será discutida e, espera-se, aprovada no Parlamento durante os próximos meses. Não é de excluir que possam surgir alterações relevantes ao conteúdo da Proposta, com potencial impacto junto das entidades que pretendam beneficiar do novo regime.
A equipa Financeiro da Abreu Advogados acompanha o processo de aprovação da Proposta e encontra-se disponível para apoiar as entidades abrangidas por este regime, incluindo no processo de pedido de autorização, bem como na adaptação às novas exigências legais e regulamentares.