08.05.2020

Áreas de Prática: Concorrência, Regulação e União Europeia

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Tipo: Helpdesk COVID 19

COVID-19 | Concorrência: exceções em tempos de exceção

Para assegurar a subsistência dos mercados e as cadeias de distribuição no contexto da crise pandémica, poderá ser necessária e justificar-se alguma flexibilização das regras do direito da concorrência aplicáveis aos acordos entre empresas.

Mas como conciliar esta flexibilidade com os objetivos das regras concorrência?

A declaração da Rede Europeia da Concorrência (ECN)1, de 23 de março de 2020, espelhou esta dicotomia: se, por um lado, relembrou que os objetivos das regras da concorrência permanecem relevantes nesta conjuntura, por outro considerou improvável que os acordos entre empresas, celebrados para impedir a escassez de oferta, violem aquelas regras – ou porque não restringem a concorrência ou porque os benefícios que a cooperação realiza justificam tal restrição2.

 

Orientações da CE sobre a cooperação entre empresas no contexto da atual pandemia

Em 8 de abril de 2020, a CE adotou um Quadro Temporário, para a análise de práticas de cooperação entre empresas, em resposta a situações de emergência decorrentes do surto de COVID-19.

Âmbito de aplicação: resposta à escassez de produtos e serviços essenciais, em todos os setores e até que a CE retire o referido quadro.

Ideias chave: o direito da concorrência permanece aplicável e as empresas continuam responsáveis por avaliar a legalidade das suas iniciativas, podendo recorrer às orientações excecionais emitidas.

De acordo com essas orientações, a troca de informações comerciais sensíveis e a coordenação entre as instalações que produzem os medicamentos serão consideradas admissíveis, desde que:

  • Sejam concebidas e objetivamente necessárias para aumentar efetivamente a produção da forma mais eficiente possível para suprir ou evitar uma escassez de produtos ou serviços essenciais, como os que são utilizados no tratamento dos doentes com COVID-19;
  • Tenham caráter temporário (ou seja, sejam aplicáveis apenas enquanto subsistir um risco de escassez ou, em todo o caso, durante o surto de COVID-19);
  • Não ultrapassem o estritamente necessário para alcançar o objetivo de suprir ou evitar a escassez no aprovisionamento.

Adicionalmente, as empresas devem documentar todos os intercâmbios de informação realizados e todos os acordos celebrados entre si e disponibilizá-los à Comissão, mediante pedido.

De modo a tranquilizar as empresas quanto à compatibilidade das suas medidas com o direito da concorrência da União Europeia (UE), a CE criou, ainda, um procedimento excecional para fornecer orientações ad hoc, que inclui a possibilidade de ser emitida um carta de conforto – relembre-se que a regra é a autoavaliação – pela CE, ao seu critério e a pedido das empresas.3

A CE já havia disponibilizado um e-mail ([email protected]), através do qual as empresas podem solicitar uma orientação informal sobre quaisquer iniciativas específicas (âmbito alargado) no contexto da presente crise, identificando: (i) a(s) empresa(s) e o(s) produto(s) ou serviço(s) em causa; (ii) o âmbito e a estrutura da cooperação; (iii) os aspetos que podem suscitar preocupações ao abrigo do direito da concorrência da UE; (iv) os benefícios que a cooperação visa atingir; e (v) porque é que a cooperação é necessária e proporcional.

 

Assim, a mera invocação de que a intenção das partes é fazer face à crise provocada pelo COVID-19 não determina que o acordo em causa não está abrangido pela proibição de acordos anticoncorrenciais4.

Também o encorajamento à cooperação por parte do Estado, nesta conjuntura, constitui apenas um elemento, ainda que favorável, para a análise da conformidade das iniciativas das empresas, em concretização desse apelo, com o direito da concorrência. O mesmo já não se aplica aos pedidos imperativos das autoridades públicas, para responder a situações de emergência (como a escassez de meios dos profissionais de saúde).

 

É mesmo necessário recorrer a tal quadro temporário e de âmbito limitado, ou seja, as regras da concorrência já não permitem excecionar este tipo de medidas?

  • Um acordo é proibido se tiver como objeto ou efeito uma restrição à concorrência. Dificilmente um acordo da natureza acima referida tem um efeito restritivo, sendo que os efeitos apenas são avaliados na ausência de um objeto restritivo.
  • Caso se trate de um acordo restritivo por objeto (como são tipicamente as trocas de informação confidencial, a distribuição de mercado, etc.), já há uma exceção legal (e respetivas orientações da CE) para os acordos que gerem ganhos de eficiência (melhor produção/distribuição, mais progresso), desde que: a restrição seja indispensável para atingir tais ganhos, estes se reflitam no consumidor e não originem uma eliminação da concorrência.
  • De acordo com a jurisprudência do TJUE e a Comunicação da CE relativa aos abusos de posição dominante, uma empresa pode justificar o seu comportamento demonstrando que este produz, igualmente, ganhos de eficiência que compensam qualquer efeito anticoncorrencial.

 

Relembre-se que os abusos acima referidos, como sejam os preços excessivos, pressupõem a existência de uma posição dominante (não confundir com o crime de especulação por lucro ilegítimo).

 

Derrogação excecional às regras da concorrência da UE nos setores do leite, plantas/flores e batatas

Em 4 de maio de 2020, a CE publicou um pacote de medidas de apoio ao setor agroalimentar, que incluí a derrogação da aplicação da proibição de acordos anticoncorrenciais aos setores do leite, plantas/flores e batatas, nos termos do artigo 222.º do Regulamento que estabelece uma organização comum dos mercados dos produtos agrícolas.

Âmbito de aplicação: os atos de execução da CE destinam-se aos agricultores, associações de agricultores e suas federações, organizações de produtores reconhecidas e suas associações, e organizações interprofissionais reconhecidas nos setores do leite, plantas/flores e batatas, no território da UE e pelo período de 6 (seis) meses.

Ideias chave: às medidas que se enquadrem nestes atos não se aplica a regra da proibição dos acordos restritivos da concorrência. Tais atos devem ser interpretado restritivamente.

  • Relativamente ao setor do leite, ficam autorizados, durante um período de seis meses com início em 1 de abril de 2020 [e não a contar de 5 de maio, conforme os restantes setores], a celebrar acordos e a adotar decisões comuns sobre o planeamento do volume de leite cru a produzir;
  • Relativamente ao setor das plantas/flores, ficam autorizados a celebrar acordos e a adotar decisões comuns relativas às retiradas do mercado e distribuição gratuita, promoção conjunta e planeamento da produção;
  • Relativamente ao setor das batatas, ficam autorizados a celebrar acordos relativos às batatas para transformação e a adotar decisões comuns relativas às batatas para transformação, às retiradas do mercado e à distribuição gratuita, à preparação e transformação, à armazenagem, à promoção conjunta e ao planeamento temporário da produção.

 

Os atos de execução preveem, ainda, obrigações de comunicação por parte das empresas à AdC, para que se possa verificar se os acordos e decisões adotados não prejudicam o bom funcionamento do mercado interno e visam estritamente a estabilização do setor em causa.

 

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1 Da qual fazem parte a Autoridade da Concorrência (AdC) e a Comissão Europia (CE).

2 Foi publicada, na mesma data, uma declaração semelhante pela Rede Internacional da Concorrência (RIC).

3 A primeira carta de conforto foi emitida pela CE à associação Medicines for Europe (Medicamentos para a Europa) e visou um projeto de cooperação voluntária entre produtores farmacêuticos.

4 De acordo, aliás, com a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).

 

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